30/11/2007

Açucarado Lausperene

Preâmbulo - Quando, na tarde de 4ª feira, 28, no Caramulo, iniciei a redacção destes versos, não fazia ideia de que o conjunto deles só seria dado por pronto na tarde do dia seguinte, em Viseu. Não é que valham mais por serem 17 em vez de apenas 8. Mas passa-se que uma íntima (e involuntária, no que me diz respeito) unidade tomou conta deles. O poema 14, por exemplo, tem mães logo de início e até ao fim. Mas juro-vos que eu só soube que o poema 16 era sobre pais quando cheguei ao fim da composição. Neste penúltimo poema do Lausperene, o sentido inicial era a visão de homens velhos passando na rua, ponto final. Mas afinal, havia mais que se (lhes) dissesse. Coisas assim, portanto – daí a necessidade que senti de preambular este conjunto esquecível.

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Açucarado Lausperene

1

Que a amargura se dê em doçura
e de versos frutos dê tão caprichosos
que lê-los não retorne em amargura
mas à doçura tornem maviosos.

É se calhar pedir de mais à vida
que escrita transpareça mais bonita
viv’ela se calhar já tão aflita
escrita ou não escrita – e nunca lida.

O mais que seja ainda lh’á-de vir
pois que tudo já foi em tal porvir.

2

Ao sol-poente, o que há de alma no corpo obedece
ao suave mandamento poedor.
À inutilidade da vida se junta a dos versos,
que assim povoa o corpo de cidade,
campo, serra, mar e ar.

São magros os dias como cães públicos.
Não emagrecem, como eles, os mortos mais queridos.
Connosco assistem ao sol no mar, essa atada
sangria que aos olhos atlantiza sem remédio.

Há-de sempre haver alguém que nos não deixe
ser fim.
Chamam-se Amor, tal
avença e tais versos e vices e versas
recomeçados,
poedores.

Ou então são só amores.

3

Grácil maravilha cintila na boca: é
a água dos olhos a ela descida: à
língua, que sobe aos olhos: do
leitor.

4

Não tanto nem tão pouco nada entregarei
já, mais, de minha pouquidão e muita idade.
A alguém como a ninguém.

Não dá dinheiro.

5

Celebro do açúcar a branca correnteza,
tocadas as papilas de alegria.
Doçura e amargura à mesma mesa:
e a esmo a mesma noite e o outro dia.

6

Sonhou minha Irmã que eu me morria.
Estreitou-a que eu não tivesse dinheiro
sequer para o viajar derradeiro
tornador de dia em noite e noite em dia.

’vagar a sosseguei de tal tormenta,
que tanto ser amado muito acalenta
até a quem não crendo se converte.
O Deus dos outros existe e alimenta
até a quem jamais O exp’rimenta
e Dele não provém, sequer reverte.

7

Rio-me com a mesma solenidade com que não creio.
Uma revoada de jornais me outona a vida.
Isto é lindo, aquilo é feio.
Pus pulsa, são, desta ferida.

Pois pulsação, minha querida,
faz bater cavo o coração.
Vida é ferida de ser vida:
solene lhe rio que não.

8

Solene retorno agora a casa.
Tenho algumas violências ’inda que exercer.
Partilho casa com um frigorífico, uma gata,
uma varanda, uma lata: há pior maneira de se viver.

Em torno, a mais glabra natureza
venta entornações de ar.
Pinheiros cabeleiram a estranheza
de o sol ser laca imanente do luar.

Clareiam a oriente pulsações.
Nimbos cumulam cirros do tipo estrato.
Suspeito que a gata anda com gato
e fecho no frigorífico emanações

de torpe alimentícia natureza:
baratas margarinas, linguiças,
queijitos pró-franceses de vão de mesa
e mortadelas e doce de framboesa.

Champanhes nunca tive, só espumantes
de vínica aguardente carbonizada.
A minha casa vinha muita gente dantes,
agora já não vem, mas a piada

é que a sinto aqui, como viera
a ver tornar-me a casa tão solene.
E como violência não exercera
que a de viver santíssimo lausperene.

9

A consciência como uma touca de algodão
envolvendo a cabeça – a cabeça
deste corpo pseudónimo que uso para
lavrar a guerra civil da vida.

Vai uma tarde santa e boa. Perto da Sé,
estica um cão os elásticos do bocejo,
alonga a perna electrizada de prazer,
dando-lhe o sol sono e também a vida.

À passagem pela montra da barbearia,
vejo um cliente só, a cabeça não olhando
o espelho na ausência do barbeiro.
É um quadro bonito e para a vida.

Amo o comércio e suas miudezas.
Como o quê é ele avulso e a retalho?
Como o quê são elas ternas e tristes?
Eu sei como o que são – como a vida.

Flâmulas de ferro medievam portais,
ali, subindo um pouco o peito pedras.
Das tabernas mana a fermentação de
frios fritos – fritos e frios como a vida.

Dois homens conversam sobre documentos.
Não são historiadores, mas clientes de
notários, utentes de repartições, donos
de seus nadas escriturados – de sua vida.

Ponho ao lado para escrever certa coisa
minha contemporânea e coeva vossa.
Trata-se de uma bolsa de couro carregada
de mapas de ar – ponho ao lado a vida.

Esqueço verdadeiramente para falsamente
recordar – o passado é uma coisa que se constrói;
o futuro, não. O porvir é de esquecer já,
tal que mais verdadeira torne a passada vida.

10

Pensa por mim algoalguém que não sou,
algodão entoucador do cume do corpo,
vulnerável serra a alheios ventos
por mais além alheios mares pensados.

11

Continuo sem uma ideia de Deus, mas
sei onde Ele mora, palaciano:
em ninhos de águias mais altos
do que nuvens na manhã acabada.

Ando pela tarde da cidade sem Deus (mas
de muitos padres) pela mão, namorando os pés
as pedras a reboque de não genuflectores joelhos:
sorrio à mentira como a uma criança.

Não, lausperene algum; açúcar nenhum.

12

Gosto das caves onde se frita peixe
e se diz mal da vida.
Entro sozinho e bebo calado.
Escondo o Camus no saco e cheiro
as gengivas alheias, delas as palavras
felizes maldizendo tudo e o peixe todo
devorando. Desconfio do queijo fresco,
petisco azeitonas e sou feliz na barbárie,
o Albert no saco.

Há muitos anos que sou feliz.
Sou de um nanismo irrepreensível
como de um combustível onanismo.
Derramo-me pelo chão em oleaginosa aguadilha,
a seguir uma quadra, aqui uma sextilha:
há anos de mais sou feliz.

Colecciono homens e esquinas e caves.
Comove-me a fruta em banca na rua.
Nunca deixo de pensar no mar, sobretudo
nas caves onde se frita peixe.

Mui poderosa é a pretérita emanação.
Formosa é a rua de granito
por que barbatanam os cardumes da tristeza:
homens molhados, enxutas mulheres – e cães,
bocejando.

Gosto,
gosto disto.

13

Digo adeus à tarde, a Deus o dia.
Nem uma nem Outro de mim se despedem.
Não faz mal, já é costume.

14

As mães navegam de barriga para cima toda a vida.
Obliteram os homens, nunca os meninos,
sobretudo quando homens.

São como padres, mas mais escuras.

As mães guardanocturnam os retratos da sala.
Ondulam as caudas pelas poças do chão.
Conferem na chuva a factura da vida.
E têm colesterol no coração.

São como catrapilos, mas mais amarelas.

As mães nunca fazem amor, só sexo.
O sexo das mães range nos móveis de madeira.
Não é possível nascer de mãe que ame no chão.
As mães não alcançam ensinar a ter amado.

São como crisálidas, mas mais duradouras.

Nenhum menino tem acesso à primavera das mães.
Pagam delas o imposto outono e a contribuição
de inverno.
Nenhum menino se safa à ideia de Mãe; só à de Deus.

São como verões de nenhuma agência de viagens.

Um dia, os meninos fazem à ideia de Mãe

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mas chegam tarde
porque não há luz
nem rede:

só as mães navegam.

15

Um pássaro de cidade
corre pelo chão
como um atleta pequenino,
como um cometa pequenino
cansado de voar.

Voa sideral o gato
em seu lugar.

16

Crucificados pelo cabide da idade passam
de facto, o fato do Tempo envergando como opas,
os homens mais formosos, mortos quase
de tão formosa passagem tanta pelas ruas.

Antigos corpos, pergaminhos próprios
falseados pela Era da Fotocópia.
Desajustados. De radiografados ossos
e translúcidas mãos venosas.

Colecciono-os. E a esquinas colecto também,
sob siderais gatos e pássaros corredores e chãos.

Aquela tília freme ventilações.
Aquele banco aceita tibiezas.
São carlos, eduardos e joões
casados com cidálias, anas e teresas.

São os pais.

17

Não digo que amanhã, ou em dois anos,
mas já dispo e despeço minha vida.
Há que antecipar a despedida:
e eu sou de antecipar sem desenganos.

Do lausperene, o laus ainda aceito,
que o perene faz rir ao mais sisudo.
Enganos são ribeiros, não oceanos:
mas quem a pouco tem lhe chama tudo.




Caramulo, tarde de 28 de Novembro de 2007 (1 a 8)
Viseu, tarde de 29 de Novembro de 2007 (9 a 17)

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Canzoada Assaltante