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Cartas da Nascente
1
O passo dado para trás já não interessa. Conta, mas não interessa. Só o desconhecido é interessante. Veja-se este homem descendo a nascente pelo centro exacto do leito. O vento dá-lhe cotoveladas de vidro, que ele recebe sem ofensa nem registo. A água vai bebendo a luz para ter o que dar de beber às sombras crescentes em torno.
2
É um homem com um saco descendo a nascente. Ele não tem frio. Um pouco de pressa, talvez, mas não frio. O saco tem três cartas por abrir. Nenhum dos envelopes tem o destinatário escrito. O que interessa é o que está dentro, não o que fica fora.
3
Entre a folhagem que ladeia a carreira, pequenos animais conspiram a existência. Deus conhece cada um deles. Nenhum deles reconhece Deus. Isso não ocupa nem preocupa o homem do saco, que segue a sua vida como se a vida dele fosse à frente. À frente e para baixo.
4
Surgem já as casas da última povoação deste mundo. Foram construídas sem ajuda de máquinas. Mãos e braços empilharam ossos e pedras, barro e cal, vidro e telha. As casas tornaram-se definitivas. Purificaram o frio e resistiram ao calor. São três casas, tantas quantas as cartas no saco.
5
Ninguém está dentro da primeira casa. O homem escolhe a primeira carta, baixa-se para a porta, aponta a carta ao espaço entre a porta e o chão do degrau. Sozinha, a carta entra, aspirada pela respiração solitária do vazio.
6
Ninguém dentro da segunda casa – e tudo acontece de novo. O homem, a carta, a recepção mágica. A primeira carta já não interessa, a segunda também não. O homem reergue-se, passa à terceira carta, à terceira casa.
7
Há duas crianças à porta da terceira casa. A porta está fechada nas costas das duas crianças. São duas meninas. Estão vestidas de branco. À cintura, usam uma faixa grená de que pendem dois coelhos mortos, um por cada menina. O cabelo delas é negro. Mas sobre as fontes é branco. E as mãos delas são enrugadas e agudas e vermelhas como pés de pombas.
8
Agora, o homem está parado de frente para as duas velhas meninas. Não lhe é possível baixar-se perante a porta, tal que a casa vazia possa aspirar a carta. Entre o homem com a carta e a casa sem gente estão as duas crianças antigas. Ninguém fala. Os três ouvem.
9
Não há mais casas. Não há mais cartas. Não há mais homens. Não há mais meninas. Três casas. Três cartas. Um homem. Duas velhas. A nascente não passa daqui. Não se pode voltar para trás.
10
As cartas são escritas para ninguém. Trazem palavras dentro, mas não há leitura. Noutro mundo que não este, talvez a correspondência seja possível. Mas outro mundo implica outra nascente e outro nascimento. E isso interessa, mas já não conta.
1
O passo dado para trás já não interessa. Conta, mas não interessa. Só o desconhecido é interessante. Veja-se este homem descendo a nascente pelo centro exacto do leito. O vento dá-lhe cotoveladas de vidro, que ele recebe sem ofensa nem registo. A água vai bebendo a luz para ter o que dar de beber às sombras crescentes em torno.
2
É um homem com um saco descendo a nascente. Ele não tem frio. Um pouco de pressa, talvez, mas não frio. O saco tem três cartas por abrir. Nenhum dos envelopes tem o destinatário escrito. O que interessa é o que está dentro, não o que fica fora.
3
Entre a folhagem que ladeia a carreira, pequenos animais conspiram a existência. Deus conhece cada um deles. Nenhum deles reconhece Deus. Isso não ocupa nem preocupa o homem do saco, que segue a sua vida como se a vida dele fosse à frente. À frente e para baixo.
4
Surgem já as casas da última povoação deste mundo. Foram construídas sem ajuda de máquinas. Mãos e braços empilharam ossos e pedras, barro e cal, vidro e telha. As casas tornaram-se definitivas. Purificaram o frio e resistiram ao calor. São três casas, tantas quantas as cartas no saco.
5
Ninguém está dentro da primeira casa. O homem escolhe a primeira carta, baixa-se para a porta, aponta a carta ao espaço entre a porta e o chão do degrau. Sozinha, a carta entra, aspirada pela respiração solitária do vazio.
6
Ninguém dentro da segunda casa – e tudo acontece de novo. O homem, a carta, a recepção mágica. A primeira carta já não interessa, a segunda também não. O homem reergue-se, passa à terceira carta, à terceira casa.
7
Há duas crianças à porta da terceira casa. A porta está fechada nas costas das duas crianças. São duas meninas. Estão vestidas de branco. À cintura, usam uma faixa grená de que pendem dois coelhos mortos, um por cada menina. O cabelo delas é negro. Mas sobre as fontes é branco. E as mãos delas são enrugadas e agudas e vermelhas como pés de pombas.
8
Agora, o homem está parado de frente para as duas velhas meninas. Não lhe é possível baixar-se perante a porta, tal que a casa vazia possa aspirar a carta. Entre o homem com a carta e a casa sem gente estão as duas crianças antigas. Ninguém fala. Os três ouvem.
9
Não há mais casas. Não há mais cartas. Não há mais homens. Não há mais meninas. Três casas. Três cartas. Um homem. Duas velhas. A nascente não passa daqui. Não se pode voltar para trás.
10
As cartas são escritas para ninguém. Trazem palavras dentro, mas não há leitura. Noutro mundo que não este, talvez a correspondência seja possível. Mas outro mundo implica outra nascente e outro nascimento. E isso interessa, mas já não conta.
Caramulo, tarde de 7 de Agosto de 2007
2 comentários:
Não percebo se és tu que estás m forma ou se sou eu que aqui venho para me põr em forma ou se é como nos maus questionários que têm sempre uma última opção mais empolgante: todas as anteriores.
Como sempre, Daniel, excelentes textos! Muito melhor que o Miguel Sousa Tavares! E esta?...
Um abraço!
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