23/11/2007

O Corpo de Volta

A partir de hoje, 23 de Novembro de 2007, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt), a crónica nº 27 de Rosário Breve.

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O Corpo de Volta

Depois de tantos anos pendurado da alma ou das árvores, o meu corpo está de volta a mim. Em vão, pelos vistos, o exilei.Sei de vago modo por onde andou e que andou fazendo, mas só agora me dou conta de quanta falta me fez. Podia tê-lo vivido, posto a meu serviço. Não o fiz e, embora não seja tarde de mais, julgo, há coisas que ambos, eu e ele, perdemos sem remédio nem resignação. E se as más vontades julgarem que estou a subdeclarar mulheres, não estarão de todo enganadas. Também, claro que sim, mas não tão-só.Há mais coisas para que um corpo é útil. É preciso para se regressar do mar, por exemplo. Sem corpo à mão, a alma fica lá, lânguida e embrulhada na ondulação como uma alga. A minha questão é parecer-me que este corpo quer levar-me para lá.Um corpo é sempre bom para ir ao mercado sopesar os frutos, auscultar o coração dos morangos e dos melões, unhar o ouro de lei das laranjas, tocar o vidro embaciado do olhar dos peixes, transportar a fome ao tabuleiro da mulher dos bolos, deitar sombra fresca como água aos baldes de flores.Está de volta, agora, o meu corpo. A questão, agora, não é o que vou fazer dele, mas que vai ele fazer de mim.
Não o esperava. Sinceramente: nesta idade, já o não esperava. Tenho-me desenrascado mais ou menos bem sem ele. Antigamente, dava-o ao manifesto. Um dia, talvez uma noite, ele ficou por lá, no manifesto. Eu fiquei no algures de cá, transparente e tributável. Dele, guardei o nome: eu precisava de um, ele nem de mim precisava, quanto mais de um nome. Ainda por cima, de um nome igual ao do meu Pai, senhor que há tantos anos não é corpo.
Agora, tenho de vesti-lo, calçá-lo, coçá-lo, dar-lhe pão e água e laranjas e cafés. Em retorno, ele dá-me pressa para evitar a chuva iminente, unhas para roer, bocejos metafísicos que me marejam de água os olhos e olhos que assento sobre as coisas como uma tinta aquosa.
Está de volta. Deve ter vindo dizer-me que, um destes dias, talvez de noite, estarei eu de partida.

6 comentários:

LM,paris disse...

Oui, je sais,depuis qu'il est parti par la tête,il voyage et parfois il revient chaussé celle que je suis devenue.
Je sais.
Lindo texto daniel, e nao sei se é ficçao, mas para uma danseuse andar numa ida e volta de benvinda ao corpo, é quase...natural.
é preciso saber larga_lo para integrar o da dança.
Gostei muito!
Benvindo ao seu entao!
Até breve, enjoy!!!
Have a nice day-day!
parsi com sol e frio!
LM

Anónimo disse...

O meu registo favorito. Delícia pura. Esplendor aqui nesta minha relva. Roo-me todo de "sastifação". Preocupa-me, porém, este regresso. Mau...

Anónimo disse...

grande texto, daniel.
Um abraço,
Luís

Unknown disse...

Uma noite destas passou uma estrela cadente, fez uma viagem incrível, de norte a sul do céu negro. Pedi-lhe que me levasse com ela, mas não o fez. Pensei, que se assim é, é porque aqui tenho que ficar. O mmo se passa com o teu regresso, ou dele, é porque tem que regressar. Viver consiste em casar-vos de novo...
Janete Gameiro

Patrícia João disse...

Brilhante Daniel. Único Daniel.

Ainda bem que o seu corpo o encontrou. Melhor ainda que tenha decidido tomar bem conta dele. Fique com ele.

Patrícia João disse...

Brilhante Daniel. Único Daniel.

Ainda bem que o seu corpo o encontrou e melhor ainda que tenha decidido tomar bem conta dele. Fique com ele.

Canzoada Assaltante