(Anoitecer ao Tom Dela, 20-24h00, de 2ª a 6ª feiras, em 91.2 FM e/ou http://www.emissoradasbeiras.radios.pt/. Blog do programa: http://www.anoiteceraotomdela.blogspot.com/).
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Submarino d’Amour
1
Chamava-se “O Submarino” e nada tinha a ver com o mar. Era uma casa-de-pasto gerida por uma mulher cuja decência tinha a claridade do sol. O marido tinha emigrado para França e regressado nunca. Aos avanços de alguns homens demarcados pelo hálito da aguardente, resistia ela com uma inquebrantável viuvez de vivo remo(r)to.
2
“O Submarino” servia uma comida muito limpa e barata. Aos tampos de madeira das mesas chegavam os pratos de louça azul e as malgas metálicas com sopa ou salada de alface com tomate e cebola. Eu gostava de ali comer a bifana nadadora de cerveja, a cara de bacalhau rezando alho, a mão de vaca jogadora de berlindes de grão-de-bico, a isca de fígado inturgescida pelo sono em leite.
3
Cheguei demasiado tarde a “O Submarino”. Fechou pouco mais de meio ano depois da minha descoberta. Lembro-me da minha primeira vez na casa, como é curial recordar as outras primeiras vezes de uma vida que a si mesma se ultima de cada vez. Foi numa tarde de sol, eram quase as três da tarde. Já ninguém almoçava. Eu pedi para comer. A senhora disse-me que sim com uma limitação:
– Tem de ser bifanas. Batata, pode escolher frita ou cozida.
4
Regressei quantas vezes pude. Nunca bati o território àquela fêmea de uma decência solar. E hei-de recordar para sempre o dia do aniversário dela. Ao jantar desse 14 de Novembro, ela não se pagou do café com cheirinho de conhaque nacional. Ela disse que fazia anos e que um dia não são dias. E não são – excepto quando passam: o dia e os anos e os dias.
5
Eu dei aulas de geometria descritiva na Escola Comercial e Industrial da Vila. Tinha um salário piorado pela ingenuidade, cariz que me levou a dizer que sim à minha mulher quando ela quis abrir uma retrosaria com secção de perfumes e cosméticos. Isto foi antes de ela se ir embora com um médico velho do Centro de Saúde e me deixar uma gaveta cheia de facturas por pagar dentro de envelopes por abrir.
6
A retrosaria (que se chamava “Glamour d’Amour”) fechou-se sozinha como uma idade – como, anos depois, “O Submarino”. Deixei o ensino e fui trabalhar para uma loja de pássaros. Depois, conheci, ganhei e perdi “O Submarino”. E depois, noutro junho igual, fiz cinquenta anos. Nessa sexta-feira de meio século, entrei num tasco perto da gare rodoviária e mandei vir conhaque nacional. Talvez tenha desejado que o cálice chegasse à mesa pago por ela – e que fosse 14 de Novembro à data, não 30 de Junho.
7
Dou-me bem com os pássaros sem árvores da loja, bem com a freguesia e bem com o patrão da loja. Dou-me bem com tudo e todos porque não me dou a nada nem a ninguém. Deixo andar – como se o andamento me precisasse de deixação. Passo em frente à padaria-pastelaria onde foi o “Glamour d’Amour” e não recordo a mulher frívola nem a estante de perfumes caros de mais para o gentio mulheril da Vila. Mas recordo “O Submarino”, que permanece afundado além das portas encerradas. Nem de ramo mudou – como um pássaro ou um fruto móveis na aragem.
8
Se gostaria de revê-la? Acho que não. A ninguém temos o direito de pedir que seja o mesmo alguém que nos chegou ou a que chegámos. Revejo-a na tarde serôdia da primeira vez, quando comi sozinho numa sala cheia de sol que não recordava o mar. Também a revejo oferecendo o café e o bagaço na noite muito chuvosa daquele 14 de Novembro. Isso é-me bastante – mesmo nada sendo, como tudo é.
9
Talvez eu a tenha amado da melhor maneira: sem que nem eu nem ela soubéssemos que eu a amava. Esse amor é, de tão parecido com a ignorância, o melhor conhecimento. E há-de ser uma boa memória, de tão fundado na simultânea amnésia de si mesmo. Digo eu, que nada sei nem possuo, nem pretendo saber ou possuir: sequer noções, já, de geometria descritiva.
10
O periquito macho é azulado nos orifícios nasais. Alguns dias são azulados também, mas nunca machos ou fêmeas, antes uma dimensão assexuada e estéril cuja maior promiscuidades são as noites e as indisposições gástricas. Para destas me precaver, aliás, almoço sozinho entre pássaros. Uma maçã e uma fatia de pão de milho bastam-me para recordar bifanas, caras, mãos e fígados. Ou para recordar o olhar dela em mim, que o sentia eu quando ela nem me olhava, como nunca olhou.
1
Chamava-se “O Submarino” e nada tinha a ver com o mar. Era uma casa-de-pasto gerida por uma mulher cuja decência tinha a claridade do sol. O marido tinha emigrado para França e regressado nunca. Aos avanços de alguns homens demarcados pelo hálito da aguardente, resistia ela com uma inquebrantável viuvez de vivo remo(r)to.
2
“O Submarino” servia uma comida muito limpa e barata. Aos tampos de madeira das mesas chegavam os pratos de louça azul e as malgas metálicas com sopa ou salada de alface com tomate e cebola. Eu gostava de ali comer a bifana nadadora de cerveja, a cara de bacalhau rezando alho, a mão de vaca jogadora de berlindes de grão-de-bico, a isca de fígado inturgescida pelo sono em leite.
3
Cheguei demasiado tarde a “O Submarino”. Fechou pouco mais de meio ano depois da minha descoberta. Lembro-me da minha primeira vez na casa, como é curial recordar as outras primeiras vezes de uma vida que a si mesma se ultima de cada vez. Foi numa tarde de sol, eram quase as três da tarde. Já ninguém almoçava. Eu pedi para comer. A senhora disse-me que sim com uma limitação:
– Tem de ser bifanas. Batata, pode escolher frita ou cozida.
4
Regressei quantas vezes pude. Nunca bati o território àquela fêmea de uma decência solar. E hei-de recordar para sempre o dia do aniversário dela. Ao jantar desse 14 de Novembro, ela não se pagou do café com cheirinho de conhaque nacional. Ela disse que fazia anos e que um dia não são dias. E não são – excepto quando passam: o dia e os anos e os dias.
5
Eu dei aulas de geometria descritiva na Escola Comercial e Industrial da Vila. Tinha um salário piorado pela ingenuidade, cariz que me levou a dizer que sim à minha mulher quando ela quis abrir uma retrosaria com secção de perfumes e cosméticos. Isto foi antes de ela se ir embora com um médico velho do Centro de Saúde e me deixar uma gaveta cheia de facturas por pagar dentro de envelopes por abrir.
6
A retrosaria (que se chamava “Glamour d’Amour”) fechou-se sozinha como uma idade – como, anos depois, “O Submarino”. Deixei o ensino e fui trabalhar para uma loja de pássaros. Depois, conheci, ganhei e perdi “O Submarino”. E depois, noutro junho igual, fiz cinquenta anos. Nessa sexta-feira de meio século, entrei num tasco perto da gare rodoviária e mandei vir conhaque nacional. Talvez tenha desejado que o cálice chegasse à mesa pago por ela – e que fosse 14 de Novembro à data, não 30 de Junho.
7
Dou-me bem com os pássaros sem árvores da loja, bem com a freguesia e bem com o patrão da loja. Dou-me bem com tudo e todos porque não me dou a nada nem a ninguém. Deixo andar – como se o andamento me precisasse de deixação. Passo em frente à padaria-pastelaria onde foi o “Glamour d’Amour” e não recordo a mulher frívola nem a estante de perfumes caros de mais para o gentio mulheril da Vila. Mas recordo “O Submarino”, que permanece afundado além das portas encerradas. Nem de ramo mudou – como um pássaro ou um fruto móveis na aragem.
8
Se gostaria de revê-la? Acho que não. A ninguém temos o direito de pedir que seja o mesmo alguém que nos chegou ou a que chegámos. Revejo-a na tarde serôdia da primeira vez, quando comi sozinho numa sala cheia de sol que não recordava o mar. Também a revejo oferecendo o café e o bagaço na noite muito chuvosa daquele 14 de Novembro. Isso é-me bastante – mesmo nada sendo, como tudo é.
9
Talvez eu a tenha amado da melhor maneira: sem que nem eu nem ela soubéssemos que eu a amava. Esse amor é, de tão parecido com a ignorância, o melhor conhecimento. E há-de ser uma boa memória, de tão fundado na simultânea amnésia de si mesmo. Digo eu, que nada sei nem possuo, nem pretendo saber ou possuir: sequer noções, já, de geometria descritiva.
10
O periquito macho é azulado nos orifícios nasais. Alguns dias são azulados também, mas nunca machos ou fêmeas, antes uma dimensão assexuada e estéril cuja maior promiscuidades são as noites e as indisposições gástricas. Para destas me precaver, aliás, almoço sozinho entre pássaros. Uma maçã e uma fatia de pão de milho bastam-me para recordar bifanas, caras, mãos e fígados. Ou para recordar o olhar dela em mim, que o sentia eu quando ela nem me olhava, como nunca olhou.
Caramulo, tarde de 20 de Novembro de 2007
3 comentários:
Sem motivo, ou por um motivo qualquer, digo-te que muitas vezes, ao ler-te, consigo associar imagens, como se de um livro ilustrado se tratasse. É como se pensasse "também me lembro disso". Continua igual a ti próprio. Também gostei de te (re)ver.
Fica bem
daniel,
anonymous est dans le vrai,
je suis d'accord pour dire,
ô combien,je sens que chacun de nous en soi,a vécu au moment de la lecture, votre histoire.
J'ai adoré, c'est tristement glissé comme un submarino( yellow )...
dans les eaux profondes ,
entrelaçant lumières du passé et réalisme du quotidien.
Texte merveilleux et triste, la géométrie descriptive ...place les becs des oiseaux dans l'espace saugrenu de la page virtuel, et nous les écoutons ,nous sommes l'absence des arbres dans la boutique abandonnée.
Merci, bonne journée, ici sombre et froide.
Em baixo à festa na aldeia...brocante!
Recordaçoes sem casa amarela...Beijinhos LM
moi, je vous remercie.
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