1
Acompanha-me a idade como um cão.
A idade ou aquilo de que é feita: papéis
molhados pela água dos olhos ou do rio ou
da chuva, certos conventualismos da luz
em abóbadas de bosques: uma só luz,
um só bosque – todos estes anos de água.
2
O sol num dia frio: imagem das nossas vidas.
Que digo? Devo dizer – da minha vida – e não
falar pelas vossas – pois que delas já tudo
sei: à minha iguais, ao sol. E frias,
nos dias.
3
Vejo daqui um trecho do vale entre serras.
É uma visão obnubilada pela bruma
interna.
Bem mais clara é a suave encosta imediata,
do lado contrário ao do coração: conto dez
pinheiros penteados pela simetria, de cada um
o pé único fincado no húmus como
uma moral.
Desce a encosta até um mínimo prado de erva,
sobre que ovelhas pontuam, pardas, uma espécie
de poema muito badalado.
Uma casa branqueja, a meia distância, uma nota
de cal.
Fulgura, frígido, o sol de novembro acabando-se.
E chega a ser doce, estar vivo em tal
vizinhança.
(Sei que tudo quer a Língua procurar, do corpo
de um homem se servindo sem remorso nem
mordomia menor: sei: e m’encontro com Ela.)
4
A tua face esquerda na tua mão esquerda,
numa pausa indolor de pastelaria.
Menos vale viver, penso, que ser da
vida a mesma pausa, ao sol do dia.
5
Pode um homem amar a redonda renda
sobre que repousa o retrato?
Pode – que a retratada face às mãos
desceu para fazer a renda, redondamente.
6
Procuro – e sou encontrado.
7
Fere brilho em uma antena de televisão
o Sol: dourador da pobre vida, afinal
rica – e brilhante – e de ouro.
8
De duro granito muraram o pasto breve,
a vã ovelha mais bale do que vale:
viver, é ser pastado ao de leve;
é, balindo, calar quanto nos fale.
Ó velha ovelha, que valhas o que bales;
a terna merda às ancas costurada
mailo terno cordeiro de ti ao lado
valem quanto já foste e és e vales.
Já fulge a oriente a noite avessa,
já ouropéis enroupam a noitinha:
que ela mora por dentro, nem vizinha
é a noite que de dia em nós começa.
9
Agora até me faz sol quando chove:
que te conheço agora, por mais que neve.
Duro granito mura-m’ a vida breve;
aind’ assim, ao sol, a ovelha move
o já não vão amor de quem te escreve.
Ama-m’a vida breve a brevidade:
também os dois pastamos ’té sol-pôr.
Me acompanha o cão da mesma idade:
ou dele os papéis da vanidade
que nevam pretas letras – com amor.
10
De dada cinza, a serra, a oriente,
dedada anil convoca e semelha:
parece-m’ela ’ma deitada gente
que às cinzas vai balindo, a ocidente.
11
Sangra-se toda ouro a nossa vida.
Que digo? A nossa vida tua.
12
Peço um pouco de tempo mais para
uma pouca vida ainda.
A nenhum deus de oleiro verso
ou oro: nem choro – mas peço.
13
E da mansa certidão fria das outonais ruas
retiro eu cópia facsimilada.
Atira muito o vento braçadas nuas,
casebres recolhem gente outonada.
Pulsam luzitazeites em fundo breu.
Papilam pensativas chaminés.
Se pudera, voltara a esmo eu
à casa que já tive e que tu és.
Não no posso, não mais revoltarei,
que manso é o friúme desta serra.
Há coisas que não soube e agora sei:
a vida é só de um morto, pobre guerra.
14
Senhora minha, infância tua alguma repescará
da minha infância o mesmo senhorio.
Repara, é terça, está frio.
Repara, é novembro, passa no rio
a água de quem houve, há, haverá.
Sequer é isto triste, se o idioma nos não falta
a baliganir morais ovicaninas.
Por menores, as ovelhas, pequeninas,
dão delas a mesma lã que a nós, a malta,
nos ensina da vida coisas intestinas
que aprendidas já eram – e pequeninas.
A doença etária da Mãe.
O pasto breve e maila tenra erva.
Etérea e venérea é, também,
às ancas costurada a terna merda.
(Diz-se cocó de ovelhas,
em linguagem escolar
p’ra/de crianças europeias.
As novas como as velhas.
As lindas como as feias.)
Senhora minha, feia te tornas co’a idade,
não shoppingcentras já co’ à-vontade
das paridas por Deus em matrimónio.
Senhora minha, meia te volves – e feia – e revolves
genitais bivalves do Demónio.
Assim veio-vai valendo o Amor,
que quem dá verso, dá valor.
Vale?
Bale!
15
Fritura e tritura a alm’adentro.
Não sei de outra coisa que fazer.
’ma coisa é o legado;
outra, o mesmo dentro
que faz viver,
ver e escrever
a esmo o mesmo duro escasso centro.
16 (Canção da Oficina do Pintor)
Pálida doçura / me houve crescendo.
Do Pai m’ela vinha / e eu nela sendo.
Frias janelitas / tão turvas manhãs
brumas e laranjas / gelos e romãs.
E o lápis cortado / e o tempo que foi
perdido e achado / e o olhar dói.
’ma água de estrelas / verões cabisbaixos
grafias tão belas / e olhos tão baixos.
Vermelho difícil / dourado melhor
adorar é fácil / amar é pior.
(Vai-se o velho homem / deixa quase nada
só a morte é jovem / moça namorada.)
17
Ovelha alguma vi eu todo o dia.
Escrevi alguma? Alguma escrevi.
Vivo como escre'via: se não via,
via, ovelhas vivi.
18
Ão, ão.
*****
Caramulo,
tarde de 26 (1)
e tarde de 27 (2 a 18) de Novembro de 2007
tarde de 26 (1)
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1 comentário:
E Novembro nunca mais acaba...
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