À passagem, sinto o rumor dos pequenos animais
fugindo entre folhas secas.
Vejo uma planta tremer tão furtivamente
quão decerto os fugitivos.
Na grande catedral transparente, o vento
alimenta de respiração o sol, que
dardeja como uma profeta.
Em outro canto sombrio da cátedra, imagino
ronde a cálida Lua, sua ignição de prata
ardendo a ouro.
Quando abandono a mata e tomo a rua de pedra,
a galáxia range como uma porta devassada.
A geometria condiciona a visão,
mas posso sempre, erguendo o olhar,
referir na cegueira do azul os pontos
que as estrelas vão tomar esta noite
de há tantos milénios.
Vivemos entre o que os arquitectos quiseram e
o que os astrónomos desejaram.
Entre estelas e estrelas, derivamos em demanda.
O firmamento nocturno do útero
envolve, reserva e alimenta o astronauta
fetal.
O útero diurno da grande catedral transparente
aquece, expõe e requeima o astronauta
fatal.
Dele fugindo, restolham os pequenos animais
do Verão.
Seca-lhes o medo a boca,
molha-lhes o terror o coração.
E no entanto tudo me indica como
um deles.
As dedadas do céu na terra são os rios.
Sangrias de mercúrio semelham eles,
cobras de cobre suicidando no
da chegada.
Degola-os o rumoroso mar, não
mensurável armazém de cutelarias e ânsias.
Não longe, por esplanadas de pedra suave
como o sabão, décadas translúcidas e
desavindas penetram-se de umas
mesmas outras, mesclando pessoas e obras
e – assim – criando a memória,
esse teatro fantasmático, e o futuro,
essa ilusão imemorial.
Sinto estas coisas como se as pensasse.
Ao cabo da rua, na pastelaria viva, vejo, à hora do chá,
baços cristais delidos de toda a esperança:
rostos de antigas senhoras. São de mãos
pergaminhadas como papéis amarfanhados.
Delas, os pescoços esticam cordas que
curvam a subir, como segurassem velas
de barco ou lonas de circo.
Não fogem, estas, à minha passagem, por
de mais vulgar e chã.
Tudo me indica como uma delas,
talvez por isso.
Galácticas são nossas efemeridades,
nisso sim dados a eternidades, nós.
Fulguramos, as tomadoras de chá e eu e vós,
como eternas velas efémeras
noutro dos mais sombrios cantos da
grande catedral.
Brilham-nos os olhos no escuro: lobos de cera
uivando a lua nenhuma.
Hemisférios e décadas remesclam
esplanadas e músicas de esferas.
Vaporizados pela eléctrica asma das derivas,
os frutos de chã e vulgar horta
(como os de um vulgar e chão passante)
repetem, uma a mil, cada estrela,
cada estela,
cada boreal bebedeira,
cada quinta-feira.
Súbdito da mente, o corpo é laboratório dela,
retortas e fósseis didácticos ensinando
a impossibilidade de aprender, numa
sala queimada a néon e a saudades
mortuárias.
Talvez daí derive a não de somenos porção
da lição: saber é recordar.
Portanto: mentir.
Sobretudo: mentir-se.
Mentir como uma querença de arquitecto,
como, de astrónomo, um desejo.
A piscina, a sideral piscina de silêncio
do universo: só
os pequenos animais alguma coisa
escutam,
ainda que tão comezinha quão
a minha passagem,
numa tarde sol devida
à Lua, à Lua delida
como ebúrneos ígneos
rostos de antigas senhoras.
A ternário compasso pulsam
as naves no alto lago sideral.
Apagados satélites de lixeira sputnikam,
em cima, a divina ausência de Deus,
em baixo, a da humanitária humanidade.
Tudo isto – ainda na pastelaria,
nós todos,
esta tarde.
Gostaria de vê-los, aos pequenos animais.
Gostaria de, um pouco só, saber de suas vidas
corredoras.
O batimento do coração deles, a gama cromática
de seus particulares arcos-íris.
Seus medos além de mim.
Se vento e sol, como me acontece, neles
alastram como o que são:
fogueiras.
Gostaria do contrário da Natureza:
que não fugissem, que me não fugissem.
Ou que eu não nascesse,
ao menos não tantas vezes.
Minhas glândulas são, como todas
as de todos vós outros,
órgãos da grande catedral.
Que digo? Órgãos?
Sinetas, quando muito.
Sinetas de menino-sacristão em jejum de água-gelo-tília.
Olha agora:
quem não, como me acontece, viaja vidas numa declinação
mata-rua,
ao sol
oxigenado de
incendiário vento?
Tento
a vida.
Anjos descubro (e
cubro,
não os contando na
pastelaria)
entre folhagens
de pequenos animais.
Anjos de mínimas cerâmicas crianças,
diferentes do que deles se alava e esperava,
anjos de oco osso
para fibra de voo, pois
que o denso tutano, grave,
favorece a gravidade.
Grave idade, a das tomadoras de chá, de mim e de vós.
Nenhuma grave mortalidade, atenção: pois que
nenhuma o é.
Ser mortal não é grave.
Ser astral é indiferente.
Azuis cortinas veludam a noite-me prometida.
Ei-la, vaporosa e fria, e cheia de carros
que não transitam.
Na volta à esquerda do canto do jardim,
vinham tweedeando britânicas composturas
os lunch-eaters de sandes triangulares de pepino,
os amortalhados suicidas
de galáxia outra: Hogarth Press.
Compunham.
Que eu saiba, não se punham,
sequer,
em homem ou mulher.
Ou estela ou estrela.
E se a morte?
Bem, a morte:
leal, a mais leal aliás,
das femininas figuras
que acorrem a uma lembrança,
a um telefonema,
dia tal, horas tal,
primeiro na capela,
entra o menino-sacristão.
Não.
Falava-vos de anjos e dos
pequenos animais que
fogem ao mínimo
vão pobre
rumor.
Não transporto bem meus panos.
Por delicadeza, nem cruzei oceanos.
Ganhei milénios (ortografia) perdendo anos
(cosmogonia: e desenganos.)
Segue.
Cada tarde (a chuva no coração,
o sol nas costas),
sinto o rumor fugitivo
dos pequenos animais
nas folhas frias,
secas,
molhadas,
enxutas.
Pipilam estrelitas-de-artifício
no céu paroquial,
papilas da língua divinal
que ofertam ao passante
papilas e ofício.
Grandes ventos sulcam de gás um só sol.
A um canto, aveludada, a casta Lua.
Toda cálida, ou fria, e sempre nua:
suas cáries astronáuticas expostas
pela América à rua.
Ou então, de todo o universo,
uma tristeza local,
uma estreiteza sitiada e localizada,
até com código postal,
numa aldeia perto de
mais do
teu
coração,
aqui,
onde sol e Lua
aquecem,
queimam
e
quase
matam.
Digo um novo matador.
Digo um novo vocativo:
Não me convoques nem cães
nem de infância pátios.
Não deram mais céu nem
mais luz do que hoje,
fugindo de mim os pequenos animais.
Não digo mais novo matador.nem de infância pátios.
Não deram mais céu nem
mais luz do que hoje,
fugindo de mim os pequenos animais.
Mais não digo novo vocativo:
devo ser corajoso e falar por eu/ele.
Quando,
nos filmes pornográficos,
revisito
Pai & Mãe,
que faço
senão
sofrer
catolicismos espermáticos?
E o céu, a ver com isto?
Tudo.
O cancro, aos 45 anos, do Fernando Pratas.
A solidão terminal, afinal inglesa, do João Bininha.
As estrelas picotando papel-de-prata,
papel-de-natal,
um natal de crianças norueguesas
que
nunca falarão português.
À passagem, era uma vez.
Texto: Caramulo, tarde de 26 de Julho de 2007
Foto: Caramulo, noitede 23 de Julho de 2007
5 comentários:
Faz por estes dias um ano que comecei a conhecer o preço da chuva nas praias do Alengarve. Um livro belíssimo. Como este texto. Posso utilizar expressões em língua estrangeira? Sem esperar pela resposta, aqui vai: larger than life.
este comentário é que é "larger than life".
my life, I mean.
Carpe diem...
e nada mais consigo expressar
encantada com as palavras
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