129
Em
instante de pausa matinal, na esplanada, Hermínio ouve dizer em mesa próxima:
“–
A minha mãe ficou viúva aos dezoito anos, quatro filhos por criar, dois dos
quais gémeos.”
São
duas velhas: uma falando, a outra escutando. H. acha piada ao dito da velha,
regista-o aqui mesmo, aqui a exactas cem páginas do manuscrito
H. em BUSCA DELFIM
ou
AINDA NÃO SEI QUE NOITE SEREI ESTA
MANHÃ
Sob
tílias frescas repousa. Oito & ½ da manhã. Há tempo para pausar-se.
Enumera
elementos transitórios (fregueses rápidos) desta esplanada sob tílias:
Vante
Celáfilo Cedral Mabílio, 44 anos, engenheiro civil;
Cazorba
Anséptimo Hortal Trende, 18 anos, aprendiz de algo;
Sota
Quipério Namarreta Cerdiz, 52 anos, enfermeira de pediatria;
Dopó
Bom-Corpo-de-Deus, 68 anos, santomense, aposentado;
Claudina
Inzabel Melriço Geitoeira, 15 anos, repetente do 8.º ano;
Porfírio
Barão Poejo Bilro, 22 anos, pingponguista da AAC;
Almira
Morim Quadros Borralho, 32 anos, desempregada;
Toinha
Barroca Convento Caldeireira, 87 anos, senhoria de garagens;
Leandro
Jazigo Marrano Passarinheiro, 58 anos, dramaturgo;
Vilhena
Perfeitidiota Malpazes Repissa, 60 anos, chulo da Câmara Municipal;
Torresma
Betencurte Demadeiros Pósito, 62 anos, açoreana das Flores.
Consumos
da onzena supra-enumerada:
Vante: quartilho de água-mineral-limonada;
Cazorba:
coca-cola (mas pediu pepsi, que aqui não servem);
Sota:
chá-de-cidreira;
Dopó:
bagaço;
Claudina:
gelado de chocolate;
Porfírio:
imperial preta;
Almira:
bica cheia;
Toinha:
galão claro;
Leandro:
absinto;
Vilhena:
mijo-de-burra-prenhe;
Torresma:
licor-de-alperce.
Entre
gentes & consumos díspares, H. é quase feliz.
As
linhas resultantes mesclam observação & especulação.
Mesclam
também & ainda: fonética & catálogo, nome & dom,
preceito
& preconceito, memória & invenção, domínio & perda,
transitoriedade
& remanescência, florilégio & sortilégio, zero & infinito,
luz
& distância, jogo & labirinto, animalidade & cibernética,
hermenêutica
& teatro, sincronia & bolor, aroma & cegueira,
irmandade
& solidão, miragem & estatuária, plenitude & deserto,
angústia
& monopoly, ultimato & república, rancor & madressilva,
chave
& jardinagem, sinapse & aço, óculos & açúcar-amarelo,
paleta
& anti-erotismo, dinheiro & (des)infância, tinta & papel.
Já
o Sol amadurece em Rosa Descomunal.
No
parque amplo, carros como cães abandonados.
Tílias
& cedros segregam a baba benigna sombra chamada.
A
mãe daquela velha primopariu aos quinze anos de nascida.
Sobre
a mesa de H. floresce a imperial mui bem tirada.
As
bolhas de gás da cerveja indiciam invisíveis mergulhadores submarinos.
Canaviais
estiolam de amarelecimento, perto do Mondego embora.
Rapazes
& raparigas em excursão-rumo-algarves: alegre barafunda.
Condutores
de BMWs negando cêntimos ao pedinte-dos-semáforos.
Condutores
de Renault-Clios dando.
A
Poesia maiúscula liberta mais do que o trabalho/arbeit em Auschwitz.
Continuo
sem saber que noite serei esta manhã.
Continuo
no dístico O amor é cego / A memória é o cão de cego.
Continuo
crendo que só a ubiquidade nos tornaria eternos.
Continuo
investindo na trindade Outubro, Outono & Rosas.
Continuo
mi(s)tificando a Infância como Idade-do-Leite-&-do-Mel.
Continuo
(des)contínuo de minha escola interior.
(NB:
contínuo, não professor.)
Continuo
não sei porquê, nem por quanto, nem até quando.
Continuo
anaforicamente por razão de ritmo.
Continuo
sem esperar.
Continuo
quase sem desesperar.
Novas
presenças à sombra subtiliana da esplanada antechoupalina:
Motário
Ronheira Valporca Naval, 50 anos, leitor de Camus (anti-Sartre);
Esquadriça
Vivende Canarim Garres, 50 anos, leitor de Sartre (anti-Camus);
Pelicano
Belimano Angústias Antíloquo, 60 anos, leitor do católico Gabriel Marcel;
Jejúnia
Pompa Fastos Rosicler, 35 anos, leitora do católico Graham Greene;
Feliciana
Faloporsi Macrebe Columbino, 20 anos, leitora de Brown (&
de merdas-parelhas-afins);
Florentino
Brelxelas Extravindo Melumbano, 90 anos, leitor de tudo & todos;
Cedina
Andor Partidrizes Demogreira, 19 anos, leitora de Manuel António Pina;
Conserúndio
Afã Basteiro Onzenardo, 28 anos, leitor de Al Berto;
Nardo
Esparto Caruma Brojo, 37 anos, leitor de Alberto Pimenta;
Baquim
Urze Giesta Linhos, 46 anos, leitor de Guerra Junqueiro.
Nos
derredores rodoviários, segue passando & desgraçando – quê?
A
mortandade dos acidentes-de-viação: boas estradas sujeitas a maus condutores.
Nas
vielas mais mijadas da Cidade, trafica-se o ópio a tostão mortífero.
(Pensais
talvez que V. malogro desinformação? Pensais mal.)
(Pensais
bem, porém, quando concluís que tergi(-)verso de mais.)
A
vida não é, ao contrário da amargura, devagar.
Viúva
aos dezoito anos, mãe de quatro petizes adequadamente infelizes.
Ainda
não sei que amanhã será a minha noite.
Não
serei, já bem o sei, nem ubíquo nem perpétuo.
Posso
ser, quando muito, vitalício.
Tenho
saudades lancinantes do senhor-meu-Pai.
Como
escrevi no Caramulo, aqui há uma dècadazita:
O
senhor é o meu Pai / Nada me faltará.
A
manhã roda & chia em seus gonzos-bonzos.
Renovada
freguesia tipo-circense vem ajuntar-se a este sínodo.
Dar-Vos-ei
dela conta & rol na próxima undécima.
Entretanto,
procedo ao inventário de todo um silabário de escrebebedor.
Lonas
isolantes (ou telas) para precaução de uma chuva que não cai.
O
senhor Henrique Santos pranteando mudamente o passamento de Luís.
(De
quem? De Luís Manuel Vide Miranda, 1960-2019.)
Chuva
que nos não vem à terra – mas aos olhos, sim.
Luís Manuel, professor & músico, cerce cortado da nossa instância.
Jacobém
Canditerno Missamá Oculaviano, 200 anos de morto, esquecidíssimo;
Imbraimo
Cenarmarne Dafé Galavaz, do C.E.P., morto no Marne em 1918;
Gardénio
Escola Pulcromano Catraca, frei franciscano (1917-1994);
Primaz
Chamiço Patitas Telhado (Moimenta da Beira, 1898-1899);
Sancho-Cisco
Madre-Silva Fonte Bispo, polígrafo (1929-1987);
Pedro
Santos Velho Lúcia, edil, n. 1983 (talvez em Leiria, não sei);
Vitório
Vaze Vale Glaciar (camionista desde 1982, ex-homeopata);
Tambalazé
Curia Alhos Vedros (artista circense, s/d);
André
Bernardes Acúrcio Mendes (actor sem teatro, s/d também);
Belarmina
Fulgor Fúrias Mansas (cozinheira de mão-cheia, n. 1945);
Cesárea
Maria Assis Percal, ménagère ou coiso, n. 1961.
Sou
do tempo em que Nacho feirava de Norte a Sul, como o vento.
Sim,
recordo o meu materAvô, precária memória embora história.
A
infelicidade existencial de Albano: corneava-o, imp(r)udente, a mulher.
(A
gente não sabe a verdade nem por a metade, quanto mais toda.)
Escrebebo
a sós, mas prefiro beber em sã & louçã companhia.
(A
moda das tatuagens pegou raiz-de-estaca: pobres conspurcados.)
Verdade-seja-dita
– mas só a tentos, tentativas, variações & alternativas.
Não
percebo o Cosmos – mas percebo a improbabilidade de Deus.
Julgo
ter-me perdido de Elias Rodrigues Faro em 1998 – cedo de mais.
Julgo
a sexualidade como algo do mais absolutista foro-privado.
Nunca
exibirei defeitos, digo-eu-co’s-nervos, quais obstinadas virtudes.
São
as onze-horas-seis-minutos da manhã de quinze-do-sete-do-vinte-&-dois-XXI.
Não
me importam: nem-o-que-nem-o-se almoçarei antevesperalmente.
Talvez
uma latita de anchovas? Ou de cavalas? Ou de atum?
Ele
há desimportância, ele há distâncias, “eu realmente”…
A
verdade é ir redactando-me principescamente à pobre.
Trabalharei
das zero às oito próximas – por tostões.
Ergo-me
cedo, esfrego de fria água tanto a cara quanto os colhões.
Taxistas
param por aqui, ingerem folhados, tomam garrafadas de água.
(Fechar-com-chave-de-ouro-o
que jamais foi aberto?
Story-of-my-life
–
responde-me Hermínio, ante o silêncio cúmplice de Delfim.)
Homens-viajantes-por-parques-verdes
atrelados a cães-humanizados.
Cristiano
Bucuresto Odessa Danzigue, pedinte-de-semáforos, idade(inde)terminável;
Chino
Ancestro Mêine Cenar, bissexual que não conseguiu chegar a tri;
Calimero
Precito Dazul Terça-Feira, vigilante de asilo-de-pobres, 58 aa.;
Carlos
Manuel Silveira Ferro, electricista, da Portela, n. 1946;
Maria
Dengrácia Valebesteiros Botulho, luso-venezuelana, 35 anitos apenas;
Hermínia
Cândida Rita Isaura, n. 1900, ano da morte de Eça de Q.;
Petra
Cante Leo Blume, italiana nascida em Dublin, 16-6-1904;
Blú
Quadrado Empena Dóide, mexicano nado em Oxford (1804);
Amado
Elegante Belinho Sapateira, Pedrulha-do-Campo, s/d;
Romano
Maurício Dodete Torres, editor de porcarias-tipo-Dan-Brown, Lx., 1940-2012;
Másculo
Erculano Camilo Veirais, tipógrafo, contentinho-da-vida.
A
par da Música, considera H. a Ornitologia a prima-obra-arte.
Os
alados cantam a escola primeva, a gregoriana filosofia.
Também
H., daqui não saindo, é cidadão-de-toda-a-parte.
E
a ele pertencem, a que pertence, cada Filha & cada dia.
Que
a paz requietória é inegável? Pois bem o é.
Que
o furor refeitório é inadiável? Pois mal o é.
Aos
58 anos (+ dois meses + 7 dias), H. já alguma coisa sabe.
(Sabe
o que nele há, o que houve, coube & cabe.)
Disto
decorre sua livre versalhada.
Esta
mesa: sem editor ou futuro, só merdice & mais nada.
(O
Rui Candeias acaba de pagar, gentil, um copázio de cerveja.)
Atentai
V. agora: Inácio Vasco Júnior Igreja, 64 anos, liberto;
Damasco
Pancrácio Sénior Verdeja, 74, esperto;
Ceitil
Vital Aramaico Alberto, 82, previdente;
Zé-Manel-Beto-Toranja,
53 & presidente;
Cristino
Varandim Goes Repilado, há meio-século nado;
Tristão
Virgínio Araújo Maldonado, na Barrinha de Mira há muito afogado;
Pancelária
Dasdúzias Debolo Dançã, sozinha p’ra sempre desd’esta manhã;
Carlitos
Romeno Ágata Lencastre, comedor de noz, amendoim & avelã;
Elizaberta
Valbom Dessanjoão Dever, olhando o calor que nos faz t(r)emer;
Chatice
dos Versos Malfeitos Derroda, a foda é não saber-se escrever.
Mas
mais V. digo, apesar-d’-embora-todavia-entanto-&-porém:
Tenho
saudades lancinantes da senhora-minha-Mãe.
Em
instante de pausa matinal, na esplanada, H.
etc.