© Garry Winogrand
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(Impossível, quase, respirar.
À berma dos quarenta graus centígrados.)
Vi & estive hoje com o Gato-Muito-Mais-Lindo-do-Mundo.
Cirandei por alheia ca(u)sa, que desertei às catorze.
Pego às dezasseis, hei que aguentar até à meia-noite.
Nunca foi fácil ser pobre, mais agora com esta caloraça.
Arábico Manuel Nobral Entrudo entra – neste Café.
Vem atestar-se de cerveja gelada, sequiosíssimo.
Acompanha-o Facécio Paupeto Bergue Capilé,
mas este não é de álcoois, é mais sumo (sacerdotíssimo).
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No antigamente de há pouco, só se falava do COVID – que por aí continua grassando & desgraçando.
No dantes de há um pouco menos, só se falava na guerra ucraniano-russa – idem.
Agora, só se fala no vento forte que lavra incêndios neste País imprudente.
Gerónimo Inácio Navarro Camacho, de ascendência índia, comenta os fogos devastadores de cada hoje com Lande Vianda Sás Freixial, madeirense de Porto Santo. Diz Gerónimo a Vianda: “– Está uma canícula de ladrar aos céus!”
Hermínio não fala, só escreve; não conversa, só versa.
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Casal de velhotes. Vieram a almoçar ao Cruz.
Levam num baldito restos para seus cão & gato.
A tarde está cerrada em neblina incendiária.
Quarenta-graus-à-sombra, um inferno obscuro.
Hermínio trabalha dentro de hora & meia.
Transpira como uma estátua de sal.
Custa-lhe resignar-se à impotência, ao Verão enlouquecido.
E não se vê ante o mar há tempo de mais.
Quando pode, abeira o Mondego, busca brisas.
Mas é um rio devindo chilro pela caloraça.
Há mil anos (ou: no milénio passado), com Agodim & Azenha,
nadou no poço choupalino popularmente “Frigorífico”.
Sim, com Agodim, Azenha, Bandoz, Brinca,
Mandrágora, Clavins, Permata, Tó-Zé I,
Belonte, Brácara, Julimenos, Fidalguim,
Tê-Pratas, Electro, Ciano & Viermona.
Já não. Já nunca mais tal sim ao Estio.
Delmonia morreu, Máledo também,
Chico-Tropa também, Tó-Zé II também
– e os pais todos de todos nós, também.
Casal de velhotes
Etc.
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Sem dentes naturais que me segurem
a prótese à mucosa senescente,
canídeo desdentado sou tal gente,
mas sem cáries afinal & felizmente.
Semelho a minha Avó quando mastigo.
Semelho o bebé descuidadoso.
Já não mordo rijezas, sou leproso
(da boca, não da Língua, meu Amigo.)
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A 14 de Julho, lá em França, tomaram a Bastilha.
Hoje, 14 de Julho aussi, Í. evadiu-se do bastilh’asilo em que, literalmente, se encontrava prisioneiro há mais de dois anos. (A pretexto da pandemia viral, na cas’asilo não deixam sair autonomamente à rua os internados.)
Hoje, bastilhamente falando, Í. está feliz. Eu também. E muito.
Anoto ainda os elementos que me circunstanciam.
O mais é aves, seres de inegável sortilégio.
Os pretéritos, revisito-os mormente em cifra-verso.
(É o meu Bletchley Park particular, privado autismo.)
Passo a água-lixiviada o chão de meu tugúrio.
Faço o mesmo aos lanços de escadas amadeiradas.
Também, por vezes poucas embora, a minha vida cheira a lavado.
Nem sempre as trevas sujas enodoam a mente-em-acção.
Í. saiu hoje do asilo a que se ostracizara por amargura.
De Espanha aqui veio ter – e não-ter, também.
Recomeça hoje a vida-ao-ar-libertado – mas com tecto.
Tecto, cama, mesa, possibilidades ínfimas mas possíveis.
Dou-me a esta prosódia-em-estrofes por saber fazê-lo.
Por querê-lo & por podê-lo, prosodio em verso-livre.
Somos todos livres até de morrer, incluindo viver.
Ominosamente como nos relatos cortazarianos? Pois seja.
Gente má & malévola não acaba de haver amanhã.
Alguma bondade é ainda todavia perscrutável a tempo.
Desligai o televisor. Saí à rua! Aves V. contemplam.
O velho Éluard ainda: “Une fenêtre ouverte / Une fenêtre éclairée.”
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