12/09/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 111 a 114

© DA.




111

 

Deitei-me, já a Rainha Santa fôra recolhida em depósito a Santa Cruz, de onde, domingo que vem, percorrerá o sentido inverso até sua residencial & permanente Santa Clara.

Alonguei-me no catre: moído de trabalho & exaurido pela caloraça infernal de todo o dia, custou-me muito adormecer. Fui dormindo aos sacolejões, sacudido por filmes expressionistas & convulsos de completa irrazoabilidade.

 Marcaram-me reunião para as 16 & ¼ de hoje. De tal concílio resultarão as condições do meu porvir imediato. Duas horas antes, o meu Amigo Í. tentará alojamento perto do meu tugúrio. Oxalá que sim. Tudo.


 

112

 

Não sei.

Assaz não sei.

Pouco há que gostasse deveras de saber.

Estão-me neste ponto as coisas.

A veterania já me chegou.

A maturidade ainda me não fez arribação.

Certa resignação, sim – mas nenhuma persignação.

Esquecimento reiterando indiferença – uma quási-felicidade.

Sim, é isto, sei finalmente que digo.

Pouquíssimo conta – mas, este, muitíssimo.

 

Pelas ruas leio fluindo a sintaxe urbana.

Os miseráveis como reticências.

Os abonados como pontos-de-exclamação.

As crianças como rimas-brancas.

Por aí de ante.

Sem mais nem ontem, sem amanhã nem menos.

Só no instante mesmo me seja/será dado saber.

Saber alguma coisa, ter um capital de certezas.

Ir rascunhando cadernos imprestáveis.

Persistir numa lírica que me não minta identidade.

 

Pescadores-à-linha ao longo do paredão.

Solidão magnífica do faroleiro, nove meses ao ano.

O meu último salário, esboroado já por as frinchas do uso.

Os dois últimos almoços, sete euros cada.

O de amanhã, não sei.

Assaz não sei.

Pouco hei que goste deveras de saber.

Irrisória-risível desimportância de quási-tudo.

Os meus Mortos remexendo as patitas, as antenas, as sílabas.

Os meus Vivos seguindo suas sendas, lendas, lêndeas, côdeas.

 

Incêndio severo em Sever do Vouga, Aveiro.

Por aqui, ambulâncias ubiquamente (o bico, a mente) uivando urgências.

Apolineodionisamente vou de azul-sal-a-sal-sol.

Sim, orgio-me a sós, bacante & vacante.

Digo isto em imagem, utente que sou de autocarros.

Às vidraças do bus acorre em desfile a minha Cidade.

Sou daqui, isto é meu, dura um fósforo, tudo se acab’alm’a.

Algumas perguntas são respondidas.

Algumas esperas são saciadas.

Se vim para poeta, que ao menos verseje – ou verso seja.

 

Nisto, o Zé C.L. amanda vir mais uma cerveja.

Ele é filho de Maurício Durães Pataias Luminal

& de Maria das Dores Saldanha Rosal.

Falam de cães, o Zé & o Fidalgo: um tem pequinês; o outro, um galgo.

Estes cenários são-me seguras alegrias.

A verso as pontuo ao correr de meus dias.

As mulheres-ditas-da-vida andam como nós à vida, ei!

Caridades dão sopa, pão-de-anteontem, sobras de azeitonas.

As mulheres ditas-de-aluguer alugam as conas.

E nascer é em-si já uma despedida: isso, eu sei.


 

113

 

Algumas pessoas dão-se ainda os bons-dias.

É agradável recebê-los na anónima alva.

Trata-se de salvação que por enquanto nos salva.

Não interessa se jazes já ou se ainda porfias.


 

114

 

“Você explica bem.” – isto ouvi hoje cedo, oito & trocos da matina. Eram dois operários numa carrinha de trabalho. Procuravam a Ponte de Santa Clara. Orientei-os. Agradeceram-me nem sabem quanto: “O senhor explica bem.” – reiteraram. Senti-me muito bem na minha promoção a explicador – e de você a senhor.

 

Dias próximos & recentes de sofrimento térmico. Ar & luz fundem-se em um sebo de quarenta graus centígrados. Como (ainda, por enquanto) trabalho, é um inferno das dezasseis às vinte & quatro horas. Sem escapatória.

 

(Óculos novos. Custaram-me os olhos da cara.)

 

Alguma normalidade impera ainda (dez-horas-quatro-minutos).

Ainda algum favónio flutua sem alarde.

Daqui porém a nada, bem o sei, tudo arde.

São incêndios feros, ferozes, algozes, brutos.

 

Dormi oito horas, escrevo oito horas, trabalho outras oito por dinheiro.

Se isto não é liminarmente absurdo, que raio o será?

Tomo um refresco na antemão da ida a óculos novos.

Refreio impaciênci’ânsi’as – nada aquentam ou arrefentam.

 

(E no entanto ainda me não convocaram da Óptica.

Gostaria de arruar a Cidade de novas lentes nas fuças.

Passa uma velha-dos-gatos, quási cega & esclerótica.

Passa um colete-de-caçador daquele tipo-Piruças.)

 

(Mensagem-SMS dos meus oculistas.

Ponho-me a caminho, algo afinal ansioso.)

Vou re-rever o mundo às vezes maravilhoso.

Eis-me de novo pronto às mais ínclitas conquistas.

 

Óculos novos. De volta são a nitidez, a claridade encadeante.

Por a frente, oito horas de jornada laboral feroz, oxalá feraz.

Coisas de pobre. Devo as lentes novéis à benemerência de Amigos.

Cada coisa a seu tempo, farei por ir restituindo óbolos.

 

A oito minutos do meio-dia, já a besta pancalorífera é ubíqua.

Um emigrado pós-madurote engata p’ra coito uma rapariga.

Promete-lhe vint’euros-uma-mini-um-maço-de-tabaco-à-escolha.

Oxalá ela escolha Marlboro ou SG Ventil Gigante.

 


 

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Canzoada Assaltante