26/12/2017
The “Pale Blue Dot” — the Voyager‘s view of Earth seen from the outer edge of the Solar System. (Photograph courtesy of NASA.)
https://www.brainpickings.org/2017/12/21/reflection/?utm_source=Brain+Pickings&utm_campaign=a0ca5edc9c-EMAIL_CAMPAIGN_2017_12_22&utm_medium=email&utm_term=0_179ffa2629-a0ca5edc9c-236363293&mc_cid=a0ca5edc9c&mc_eid=31796d253b
Ver também:
https://www.brainpickings.org/2016/04/25/black-hole-blues-janna-levin-joseph-weber/
21/12/2017
23 verbogramas só porque sim - Rosário Breve n.º 535 in O RIBATEJO de 21 de Dezembro de 2017 - www.oribatejo.pt
23 verbogramas só
porque sim
1 Mulher-de-calças-cor-de-verde-musgo-molhado.
Nádegas
dela: duas-meias-melancias-pingonas.
2 Rapaz-de-bigode-escovinha-ralo.
Nariz
dele: milhafre-adunco-hebraico.
3 Cão-à-chuva-pela-berma-da-estrada.
Cauda
dele: ponto-de-interrogação-sem-pergunta-antes.
4 Homem-de-guarda-chuva-preto-aberto.
Metáfora
dele: morcego-convexo-sustendo-as-lágrimas.
5 Aqueloutro-homem-nosso-leitor-que-no-Quinzena-me-interpelou.
Palavras
dele: “O-senhor-achegue-lhe-e-arrefinfe-lhe-com-força,-
home’!”
6 Rapariga-de-cabelo-cintado-a-seda.
Ornitologia
dela: espécie-de-andorinha-primavera-perpétua.
7 Recentes-chuvadas-torrenciais-pós-seca-prolongada.
Lição
delas: Natura-maltratada-dá-se-por-vingada.
8 Maria-do-Mar-peixeira-de-Sesimbra.
Marido
dela: pescador-Serafim-Petinga,-tinto-ou-branco-tudo-é-pinga.
9 Menino-absorto-à-janela-vendo-o-que-chove.
Olhos
dele: de-gato-humano-verdes-como-esmeraldas-incendiadas.
10 Sem-abrigo-romeno-a-quem-dei-blusão-impermeável-que-me-tinham-dado.
Olhar
dele: relâmpago-de-gratidão-surpresa-menino-outra-vez-como-o-da-janela.
11 Tecla-do-hífen-do-meu-computador-portátil.
Aspecto dela:
cor-de-burro-fugido-ao-dono-por-uso-&-abuso-contuso.
12 Senhora-que-em-2004-vi-no-jardim-da-Casa-Museu-Passos-Canavarro.
Aura dela: gladíolo-azul-cabeça-toda-d’ouro-viúva-de-poeta-lindíssima-septuagenária.
13 Funeral-do-meu-Amigo-José-António-Conceição.
Família &
Amigos dele: gente-de-vidro-atirada-à-bruta-ao-granito-da-realidade.
14 Quatro-“clubes-grandes”-do-futebol-português.
Por ordem
decrescente: Benfica-AntiBenfica-Sporting-&-União-de-Coimbra-&-nem-mais-um.
15 Dez-andorinhas-6-+-3-+-1-em-cabos-suspensos.
Metáfora delas:
raparigas-de-cabelo-cintado-a-seda-perpétua.
16 Jogadores-de-sueca-à-mesa-de-pano-verde.
Aposentações profissionais
deles: polícia-camionista-cantoneiro-cardiologista.
17 Razão-pela-qual-a-Vida-é-Ave-também:
Por-trazer-a-morte-no-bico-com-ou-sem-grão-na-asa.
18 Pergunta-de-François-Villon-segundo-Umberto-Eco:
“Mas
onde estão as neves do ano passado?”
19 Pergunta: O-que-é-a-idade?
Resposta:
É-um-total-transitório.
20 Pergunta: O-que-é-ser-intelectualóide?
Resposta: É-chamar-Alorna-à-própria-marquise.
21 Pergunta:
A-figura-do-Dom-Quixote-ainda-é-útil?
Resposta:
É,-porque-o-que-Cervantes-também-serve-depois.
22 Pergunta: Por-que-motivo-é-tão-fácil-identificar-um-fumador-de-haxixe?
Resposta:
Porque-entre-a-Pedra-&-o-Altar-ele-nunca-dá-lume-ao-segundo.
23 Nascimentos-das-minhas-Filhas.
Visitantes delas:
Gaspar-Belchior-&-Baltazar-trazendo-consigo-ouro-incenso-&-mirra, sob a
belenense & auspiciosa Estrela.
14/12/2017
Cegueira, clarividência & circularidade do latinismo “et cœtera” - Rosário Breve n.º 534 in O RIBATEJO de 14 de Dezembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Cegueira, clarividência & circularidade do
latinismo “et cœtera”
Como tantas
pessoas, senão todas, vi & vivi já manhãs cegas & noites clarividentes.
Sobre umas como outras, os anos exerceram a sua autoridade tão obnubiladora
quão propensa à mera, cerce & inescapável obliteração.
Nem a umas lamento,
nem a outras louvo – limito-me a dar, de outras como de umas, essa espécie de livro-de-razão duplicemente chamado lucidez & resignação. Um mote subjaz, sólido, a estas voltas: a própria
eternidade se volve efémera quando exposta ao esquecimento.
É possível que
algumas circunstâncias loco-temporais da minha experiência logrem convencer o/a
Leitor/a a não desistir já da corrente crónica. Assim:
pela tarde de uma
sexta-feira natalícia de 1984, comprei, numa livraria de referência da Cidade
dos meus vinte anos, dois exemplares da tradução portuguesa de Ficciones, do argentino Jorge Luis (sem
acento) Borges (ed. Livros do Brasil, Lx., trad. de Carlos Nejas, revisão de
Maria Ondina & capa de Lima de Freitas, © 1969). Recordo tê-lo lido na
altura com o eufórico ardor de quem começa a reconhecer na (boa) Literatura uma
forma-de-vida preferível à vidinha
quotidiana.
Três décadas &
três anos depois, reencontrei-me com o meu exemplar – o gémeo que dele comprara
era de presente para um meu Irmão, mano que hoje, para nossa amargura, se
encontra bastante doente. Na manhã de 29 de Novembro do (ainda) corrente 2017,
atirei-me à releitura dessa obra magistral, cônscio embora de não ter já os
vinte anos d’aquando a primeira leitura & temeroso de os meus correntes
cinquenta-e-três, a-páginas-tantas de tantas páginas lidas desde tal remo(r)to
1984, me poderem ofuscar a memória dulcíssima do primeiro fascínio decorrente
da descoberta de Borges. Já me tem acontecido, isso de reler em plena madurez
livros que me (des)concertaram (n)a mocidade
– ficando-me o palato da mente por modos insalubre, insaciado: e
decepcionado algumas vezes, até.
Tal não foi tal,
desta vez. Ficciones (Ficções) continua a ser uma obra-prima
de curtos relatos – daquela concisão lapidar tão ao modo & do gosto
borgesianos. O Próprio J.L. Borges, no Prólogo
à primeira parte da obra (datado de “Buenos
Aires, 10 de Novembro de 1941” ),
é particularmente explícito quanto a este aspecto:
“Desvario laborioso e empobrecedor, o de compor vastos
livros; o de explanar em quinhentas páginas uma ideia cuja exposição oral cabe
em poucos minutos.”
(Monsieur Proust n’est pas d’accord, don
Jorge Luis!)
Como sempre faço em
face de livros bons, enriqueço-me de vocábulos & de locuções cuja partilha
pública acresce sobremaneira ao meu prazer privado. Tenha uma pérola dessas para Vós. A ostra de que provém é a pág.ª 123 da
sobredita tradução portuguesa:
“Pensou que, à hora da morte, ainda não teria concluído
o encargo de classificar todas as recordações de infância.”
Ora, por não ser
chegada (não ’inda) nem a minha nem a tua, ó Leitor/a, inexorável hora
terminal, será talvez curial (re)começar por te (re)dizer que
“Como tantas pessoas, senão todas, vi & vivi…” Etc.
11/12/2017
10/12/2017
07/12/2017
Dois óbitos & uma dívida - Rosário Breve n.º 533 in O RIBATEJO de 7 de Dezembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Dois óbitos &
uma dívida
Na
passada semana, o obituário nacional viu-se acrescido de dois nomes
(re)conhecidos por quase todos nós, Portugueses: o do multimilionário Belmiro
de Azevedo & o do músico Zé Pedro.
Do
hipermerceeiro propriamente dito, parece que tinha uns milhões de euros; quanto
ao guitarra-ritmo dos Xutos &
Pontapés, os milhões que detinha eram de amigos & admiradores.
Belmiro
pertencia àquele um-por-cento do
mundo que está na raiz directa do que acontece aos irrelevantes noventa-e-nove percentuais do resto
demográfico do planeta.
Nenhum
rancor nem inveja alguma me movem contra a imagem do engenheiro. Associei-o
sempre, todavia, a baixos salários, a empregos precários e a carreiras
profissionais sem depois-de-amanhã. Mas não criou ele muitos postos de trabalho?
Decerto. Só que a grande massa dos (sub)assalariados do rol de pagamentos do
engenheiro Belmiro não há-de ter muita cera votiva a derreter in memoriam do plutocrático defunto. O
hipercapitalismo é um anti-humanismo: e ninguém me tira deste convicto finca-pé
ideológico-económico.
Já
Zé Pedro me parecia de outra dimensão. Tipo do eterno-jovem, sabeis? Genuíno,
de sorriso leve sem leviandade – uma estrela humilde, enfim.
Não
seria um génio musical – mas também nunca se armou em tal. Interagia como peixe
na água com as múltiplas gerações de músicos que admirou e que o admiravam.
Para (muita) pena minha, não pude assistir, aqui há uns anitos, no estádio da
minha Cidade, à abertura dada pelos Xutos
ao concerto conimbricense dos sempiternos (até mais ver) Rolling Stones. Sei de fonte-limpa que tal actuação foi uma das
mais altas alegrias da & na vida dele. Ele & os companheiros
“aqueceram” a multidão para os senhores que se seguiam: Jagger, Richards, Watts
& C.ª. E fizeram-no à maneira de “homens
ao leme”.
Em
outras paragens, no entanto, assisti aos Xutos
ao vivo. Era gratificante a mescla de idades do auditório: avós & netos
& maduros & noviços devolviam unissonamente aos músicos os muitos temas
celebrizados por esta banda começada aos 13 de Janeiro de 1979.
Morrer
de juventude aos 61 anos não me parece bem. Curiosamente, a má-nova do
passamento de Zé Pedro trouxe-me à lembrança um tal António Variações & um
tal (esse sim, genial) Bernardo Sassetti. Ardis da memória.
Para
todos nós, com ou sem milhões de euros e/ou admiradores, a Lei é material,
concisa, orgânica & inexorável: nascendo, cometemos o primeiro acto
necrológico. Não sei se, da imensa fortuna que acumulou em vida, restará agora
a Belmiro de Azevedo alguma moeda com que pagar ao barqueiro do letal rio – mas
sei que lhe pagámos sempre o que lhe comprámos. Por conseguinte, contas aviadas
com ele.
Todavia,
é ao artista Zé Pedro que ficaremos para sempre a dever alguma coisa. E essa “alguma coisa” não se vende em
hipermercado algum, senhor engenheiro.
01/12/2017
Uma gratidão vezes 32 - Rosário Breve n.º 532 in O RIBATEJO de 30 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Uma gratidão vezes 32
Não
se trata nem de elitismo meu nem de apatia minha – mas a verdade é que sinto
cada vez mais repulsa por certo opinativo-jornalixo
que neste morredouro de tansos chamado Pátria se pratica 24 horas por dia / 7
dias por semana / 12 meses por ano: julgo eu que desde 1143, ainda por cima.
Estou
sendo completamente franco para convosco: e bem mais que de costume.
A
que me refiro eu em concreto? Em concreto, a tudo: ao terrorismo parolo &
ubíquo do futebol; ao facto concretíssimo (ou “naturalíssimo”, já?) de as
pessoas irem ao hospital para se curarem de uma maleita vulgar e saírem de lá
de pés tão juntos quão frios por causa de um mal que nem era o que as lá
levara; os especialistas de
toda-a-merda-&-mais alguma a propósito de nada-&-de-tudo (com
prevalência do nada, naturalmente); o
carnaval grotesco a propósito da tragédia dos incêndios deste ano; a impunidade
(até à redentora prescrição judicial) dos corruptores de toda a espécie:
política, económica, económica & política.
Farto
disto. Não é do meu País que estou farto. É da espécie de desPátria em que se deixou enredar. Números: o salazar-marcelismo
durou 48 anos; o 25 de Abril já foi há 43. Pergunto: nada aprendemos em quási
outro tanto tempo? Continuamos a fazer da persignação o que deveria ser marcha
porquê? Nas redes sociais (que entretanto abandonei de vez por razões cá muito
minhas), a idiotia grassa como uma epidemia tão impossível de segurar como, com
as mãos, as ondas do mar.
Reajo
assim: ambulo pelas ruas. Anoto o que vejo. Ouço o que dizem. Tomo café devagar
como um beija-flor filmado em câmara-lenta. Uma vez por semana, é-me dado o
alto privilégio de escreve’dizer em voz-alta, nesta coluna mesma, o que o mundo
me suscita.
E
aqui era ao que eu queria chegar – e cheguei. O meu/nosso/Vosso O RIBATEJO fez por estes dias 32 anos.
Em papel como electronicamente, este Jornal NUNCA é jornalixo. É SEMPRE ético, isento, deontológico & limpo sempre de
corpo & alma.
Sai
às quintas em papel e todos os dias pelo ‘site’
http://www.oribatejo.pt/.
E
é uma honra ter-vos ao alcance do olhar, senão das mãos, através dele.
Sou-Vos
gratíssimo por tal honra. Ela vos presto em grato retorno.
29/11/2017
23/11/2017
EFEMÉRIDE COM ASAS & GARRAS - Rosário Breve n.º 531 in O RIBATEJO de 23 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Efeméride com asas
& garras
Novembro
é muito mnemónico para mim, tirante os outros onze meses de cada anuário. Vós
tendes lido que sim, não ireis agora desmentir-me sem sequer me dar cá por esta
palha.
Foi
a 1 de Novembro de 1981. Sétimo de sete filhos, era eu finalmente dono &
senhor do meu quarto de celibatário sem pulsões esquisitas de adolescente
esquizóide.
Seis
meses antes dessa fatídica data, um pardal perdido escabeceara em desespero a
vidraça da minha janela. Não tinha leme de navegação. Isto é: não tinha cauda.
Recolhi-o na terra como quem colhe do céu uma esmeralda castanha. Dizem que os
pardais não são de cativeiro. Coitados. Percebem nada da coisa. Os pardais,
como as pessoas que o mereçam, são de quem os ame – mesmo sem rabo. E cativeiro
nunca foi amor, a não ser nas Endechas
que Camões dedicou a Bárbara.
Chamei-lhe
Cachopo. Nunca mais saímos do quarto,
claro. Acabei o 12.º ano com a dificuldade própria dos maridos emigrados no
Luxemburgo que deixam na aldeia as mulheres ao deus-não-dará. Durante aquele
feliz semestre irrepetível, o meu Pardal escagaçou com alegria a minha colecção
completa das Obras idem do meu amado
Eça. E o meu Conan Doyle todo do meu Sherlock. E os meus primeiros Cortázar,
Calvino, Camilo, Camus: todos por C como
o meu Cachopo.
Dava-lhe
água de beber pela boca. Pela minha boca, digo. Ele sentia o copo a içar-se aos
meus lábios. Vinha logo, torto como o bêbedo que eu vim a ser, poisar-me na
cabeça. Descia-me a orelha pela suíça. E bebia-me da boca como jamais mulher
alguma foi jamais capaz de fazê-lo.
As
moscas gordas desse Verão foram a nossa comum alegria carnívora. Nunca
spray-fumiguei o meu quarto. Não, nada disso. Esperava por elas entre vidraça e
cortinados. Esmagava-as com a delicadeza que me é própria e que Vós tão bem
sentis nestas crónicas lacrimosas. Depois, sobre o mesmo papel onde eu já então
escrevivia os meus versos ilegíveis, dispunha-as em parada de morgue. O Pardal
vinha comê-las, uma a uma, como quem vai ali à cervejaria comer devagar o
bife-da-casa. O resto era A&A&A: Água, Arroz & Amor.
A
1 de Novembro de 1981, comigo fora de casa, o meu Irmão Fernando deixou-me
entreaberta a porta do quarto. Em casa de meus Pais, não trancávamos portas.
Era como (não) fazíamos ao coração – o que deu no que nos (não) deu para o resto
da vida.
Um
gato vizinho entrou e matou-(m)o. Dei com o meu Pardal sob as patas do felino,
morto já e pronto a ser comido como uma mosca das que eu criava para ele.
Pontapeei o gato com a força do desespero. O desespero deu para o gato ir bater
no caule do cedro a cinco metros de lonjura. Não consegui acabar de assassinar
o assassino. Mas nem eu era Cristo, nem o meu Cachopo podia ser Lázaro. Sepultei-o à vista da janela do quarto
que foi nosso. Usei uma caixa-de-fósforos de cozinha como ataúde. Não orei por
ele: Deus não existe.
Depois
disso, o mesmo gato levou-me o meu Irmão Jorge & os meus Pais. Mais alguns
Amigos. É um gato P&P&P: persistente, profissional, permanente.
E
nunca tem o rabo de fora, como Deus costuma ter.
16/11/2017
No táxi 17 do senhor Silva (ou Um doutor de rostos) - Rosário Breve n.º 530 in O RIBATEJO de 16 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
No táxi 17 do
senhor Silva
(ou Um doutor de
rostos)
Aconteceu-me
a 3 de Novembro do corrente ano. Eu tinha passado a manhã, a hora de almoço e
mais duas horas a escrever. Coisa infelizmente rara, chovia. Eu tinha um euro e
sessenta cêntimos na algibeira. Por volta das quatro da tarde, entreguei à
gerência do Café os sessenta cêntimos da bica.
Pus-me então a pé, de derradeira moeda de euro no bolso, a caminho de outro
estabelecimento onde pudesse aproveitar o entardenoitecer para escrever ainda
mais qualquer coisita. Aproveitei uma aberta pluvial e ala que já era (de)
tarde. Fui andando. Voltou a chuviscar a meio do meu percurso. A descer, todos os santos ajudam, mas a
subir nem o Diabo empurra. Ora, eu ia subindo.
Foi
então que a meu lado, a meio de uma ladeira mais íngreme do que a minha
carreira literária, parou um táxi. Disse-me o senhor taxista assim: “ – Amigo, para onde vai?” Eu
respondi-lhe que “para tal parte
assim-assim”. E ele para mim: “Calha
bem. Vou buscar aí mesmo um cliente. Entre, amigo, que está de chuva. Temos de
ser uns para os outros.” Eu fiquei siderado. Ainda tentei dizer-lhe que não
trazia comigo dinheiro nem para a bandeirada
da porta do lugar-do-morto. Ele, todavia, nem quis saber. Mandou-me entrar sem
encargos quaisquer. Entrei. O trajecto era breve, mas deu para frases trocadas.
Ele
disse-me que era o Silva do Táxi 17. E mais disse: “ – Eu parei porque vi que a sua cara era a de um homem sério, honesto
e trabalhador. Vai daí, nem hesitei. Dou-lhe boleia com todo o gosto. Sabe, eu
ando nesta tarimba de taxista há 51 anos. Já sou uma espécie de doutor de
rostos. Tiro-os logo pela pinta.”
Depois,
perguntou-me de onde eu era. Eu disse-lhe a verdade: “ – Sou daqui perto, dali da Pedrulha.” E ele então assim para mim:
“– Essa é boa. Tenho lá um concunhado. É
o António Lucas, conhece? Ele é casado com a irmã da minha mulher. A minha é
Natalina e a dele é Maria.”
Eu
conhecia, claro. E repeti-lhe a banalidade de o mundo ser pequeno. E
acrescentei: “ – Mas a sua bondade para
comigo não é pequena como o mundo. Fico-lhe muito grato.”
Deixou-me
na esplanada que eu almejava. Fiquei sem poder escrever uma linha. Tinha sido
“vítima” de um acto filantrópico da parte de um desconhecido. Não podia ser. De
novo a pé, rumei à minha terra. Fui a casa do meu Amigo Tonito Lucas.
Contei-lhe o que se tinha passado. Já era esta crónica em andamento.
E
o Tonito assim para mim: “ – Eh pá,
tiveste sorte! O Silva é um porreiraço. Entre colegas da profissão, até lhe
chamam “doutor”. Ele sabe tudo do
ofício e não se importa nada de ensinar os mais novos no ofício.”
Pedi-lhe
mais esclarecimentos. O senhor Silva é homem para 75, 76 anos. É casado desde
sempre com a Natalina, irmã da Maria do Lucas. É ali de Vale de Marelo, Semide.
Tem duas filhas (Margarida e Catarina) e dois netos (Fábio e Ricardo).
Trabalhou desde cedo em fábricas de fiação. Depois fez tropa em Moçambique. Ainda
trabalhou para o Serviço de Águas e Saneamento do município de Coimbra. Passou
depois a taxista empregado. Logo que pôde, tirou alvará profissional e
tornou-se patrão de si mesmo. Até hoje. Ou: até dia 3 de Novembro passado,
jornada de chuva em que me deu boleia sem ser por esmola mas por pura
solidariedade humanista.
Lembro-me
de ele me ter perguntado o nome. Eu disse-lhe a verdade: “ – Sou Daniel.” E só então percebi toda a verdade: havendo-me dito
ele que o meu rosto era de homem sério,
honesto e trabalhador – e para mais chamando-me Daniel –, o senhor Silva do
Táxi 17 não me tinha dado boleia a mim. Tinha antes, sim, tirado da chuva o
senhor meu Pai. Esse sim sério, trabalhador e a honestidade em pessoa. Ou por outras
palavras: o senhor Daniel meu Pai, sócio póstumo do senhor Silva do Táxi 17.
09/11/2017
Efeméride com recado - Rosário Breve n.º 529 in O RIBATEJO de 9 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Efeméride com
recado
1 Foi há quarenta
anos. A 5 de Novembro de 1977, vi publicado, pela vez primeira na vida, um
texto meu. E logo no suplemento literário infanto-juvenil de um jornal de
âmbito nacional. Eu tinha treze anos – e o senhor meu Pai era comprador e
leitor quotidiano de dois diários nacionais, nesses anos em que o 25 de Abril
ainda era uma data relevante. Era também a época de leitura & análise integral
de obras portuguesas logo nos 7.º e 8.º anos de escolaridade. Fui abençoado por
duas delas: Esteiros, de Soeiro
Pereira Gomes, e Seara de Vento, de
Manuel da Fonseca. Notareis facilmente certos resquícios neo-realistas no tal
meu primeiro texto em letra-de-imprensa. O título é algo Vivaldiano, mas não vos equivoqueis: a coisa era mesmo de ter lido e amado o meu Soeiro e o meu Fonseca.
Eis, pois, o dito:
2 AS
QUATRO ESTAÇÕES
Quando chegou a
Primavera / transbordou vida nos campos e nos / olhos dos homens. Houve até
quem / dormisse por entre madressilvas / congeminando formas de melhorar / a
vida. //
E no Verão, quando
o sol ardente / lambeu os corpos e tornou mais / difícil o trabalho aos
aldeões, os miúdos / assaltaram o rio, buscando / na frescura das águas
aventura e / desporto.
Chegou o Outono. As
folhas das árvores caem como / lágrimas que largam o que foi / a sua companhia.
E a poesia dos homens / morre com o enterrar das enxadas / na terra de sempre.
//
Mas cai o Inverno,
e não transborda agora / vida nos olhos dos homens, nem os garotos / procuram
aventura. A chuva / encharca a terra e alaga a alma / aos homens. Afoga-se na
taberna / o desejo de progresso. / Terras de sempre. //
3 Pessoal, atenção
& cuidado: esta evocação nada tem de auto-adoração. Nada disso. Tem outro
intuito. E o outro intuito é este: mandar recado a um dos 21 presidentes de
câmara eleitos no 1.º de Outubro recente. Recado: Senhor Presidente, não acho
que o senhor saiba quem foram Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fonseca. Senhor
Presidente, acho que V.ª Excelência nem lê as minhas crónicas neste Jornal
(embora eu tenha a certeza de que a seus augustos pavilhões auditivos são
sopradas as partes-gagas das ditas crónicas a seu respeito.) Ainda assim,
Senhor Presidente, há duas outras obras cuja leitura talvez melhorasse o que o
senhor (des)faz à & da sua terra. Essas obras são: Dinossauro Excelentíssimo, do português José Cardoso Pires, e O Outono do Patriarca, do colombiano
Gabriel García Márquez.
Se
não tiver pachorra para lê-las de fio a pavio (até porque nenhuma delas tem bonecos), vá o Senhor Presidente ao Google à cata de resumos fáceis dessas
magníficas narrativas. Ou então, em generosa contraproposta minha, não ligue
nada nem a mim nem a livros. Aproveite antes o tempo do seu mandato para fazer
com que o território a seu (in)feliz (co)mando se não torne, sabe o Senhor em
quê? “na terra de sempre”.
02/11/2017
Fala o Senhor Professor Abelha - Rosário Breve n.º 528 in O RIBATEJO de 2 de Novembro de 2017 - www.oribatejo.pt
Fala o Senhor
Professor Abelha
Sou
um fulano de rotinas. Sou-o de facto. Talvez o seja pela dupla ilusão da
segurança e da sobrevivência. A perna das calças em primeiro é sempre a
esquerda. Levo sempre o mesmo número de cigarros na cigarreira. Frequento dois
Cafés: um de avenida à sombra de tílias; outro de urbanização popular, a cuja
praceta preside um choupo todo bonito. A bica matinal é no das tílias; o resto
das beberagens é no do choupo. No bornal, os cadernos a manuscrever vão na
horizontal; os livros a consultar, na vertical. Os lápis só convivem com os da
sua raça no lado esquerdo do estojo triplo. A caneta, os marcadores e as
esferográficas, no direito. Ao centro, borracha, afiadeira, tesoura, cola. É só
assim que posso ser feliz. E seguro. E sobrevivente.
No
Café das tílias, repito com os donos (Luís & Rita) sempre a mesma graçola
cifrada: que o copo de água é a sessenta cêntimos, enquanto a bica propriamente
dita é oferta da casa; no Café do choupo, peço coisas tipo “uma-ucal-fresquinha-com-meia-torrada-com-manteiga-só-dum-lado”.
Respondem-me que sim-senhor-Abelha. E servem-me o bagaço, naturalmente. É uma
forma de felicidade como (quase) qualquer outra. Neste mesmo estabelecimento, o
Martim (filho do casal que gere a casa, Leonel & Nélia), chama-me de vez em
quando para o ajudar nalgum pormenor dos trabalhos-de-casa: ler, escrever e
contar, sabem? O menino nem sabe a alegria que me dá: chama-me “Senhor
Professor” e depois aperta-me a mão como os homens de bem fazem uns aos outros.
Ontem ofereci-lhe livros próprios para a idade dele. Ficou contente, mas voltou
logo que pôde à caderneta de cromos da bola que anda a preencher.
O
problema é quando entardenoitece. Sinto-me invariavelmente perdido num
descampado feito de prédios alheios eriçados de casas a que nunca chamarei
minhas. Remedeio o embaraço pondo-me a cirand’ambular a pé pela noite como os
doidinhos & os guardas-nocturnos de antigamente. Como a Churrasqueira da
minha terra só fecha às 23h00m, para lá me dirijo. Chego-me a ela, adiro a
pança ao balcão e peço qualquer coisa tipo “uma-ucal-fresquinha-com-meia-torrada-com-manteiga-só-dum-lado”.
Respondem-me sempre: “Está bem, abelha.
Compreendi-te.” E servem-me o bagaço, naturalmente. Estou finalmente em
casa. Por assim escrebeber, perdão, escreviver, perdão, por assim dizer.
29/10/2017
27/10/2017
Escrevo sempre a mesma coisa, ora vejam - Rosário Breve n.º 527 in O RIBATEJO de 26 de Outubro de 2017 - www.oribatejo.pt
Escrevo sempre a
mesma coisa, ora vejam
1 (2006) – Antuzede, o Sol mais total deste mundo. Tenho quatro anos. Há
funeral de alguém velho, alguém da terra do Pai. O Pai leva-me. Recordo a
totalidade pânica do Sol. Em descampado (ou em esta mesma Praça, tantos anos
depois’antes), a urna – negra, toda feita de sombra. A par do achado (sob um
cartão) no Pátio, é a minha primeira – quiçá definitiva – recordação. Isto tem
de estar a acontecer em 1968. Duvido de que possa ser já 1969. Comporto-me como
o principezinho que sou, filho tardio de um homem de 51 anos, à data do
funeral. Tenho eu hoje 53 feitos, sou mais velho do que essa versão do meu Pai.
Como é que isto pode (não) ser, verdade? Verdade. Mentira. Algures nessa cabeça
de quatro anos há já sinais desta de 53. Certa afinal serenidade ante o
descalabro da morte individual, o escândalo dessa lei não votada nem vetada.
Certa concertação resignada ante a totalidade, o absurdo, o corriqueiro, o é-igual-para-todos. (Muitos anos
depois’antes, aqui voltarei para inumar José, pai de Joaquim Jorge, Carvalho.)
O Tempo, como as medusas feitas de água translúcida, transparecendo-se de si
mesmo em volutas de luz + água + resíduos saibro-argilosos, cinema de um só
bilhete para a eternidade do Domingo. Nem alegria, nem tristeza, nem outrossim
agonia ou júbilo – mas tão-só uma espécie, não sei, sei lá, de sideral
serenidade baqueando de pau, bola & ponto ante as bancadas desertas, sobre
rala relva, que aliás o descampado do Morto-de-1968 não criava.
2 (2017) - Era uma lembrança veemente da primeiríssima infância: uma praça
árida cujo chão de terra aparecia queimado sem sombra nem clemência pelo sol
vertical de Junho; os cangalheiros haviam pousado o caixão, limpavam os rostos
com grandes lenços brancos; o morto esperava a retoma sem o mínimo queixume; as
mulheres eram perfeitos corvos de um negro quase azul, como o de certas noites;
e ele não podia, então, ter mais de quatro anos. A lembrança não era equívoca:
o funeral continuava a ter sido na aldeia natal do Pai, que o levava no
préstito pela mão do lado do coração. Não se tratava, por isso & não ainda,
do funeral do Pai. Era o de um homem que já era homem quando o Pai era menino.
E então, num golpe cerce, passara meio-século.
A
lembrança não era apenas veemente mas assaz recorrente ainda. Não lhe doía nem
o animava – era como o nariz a meio da cara sem ter de pensar nisso para que
continuassem a existir ambos: ele & seu nariz; a lembrança & ele. Era
também como o funeral do Pai: o funeral passara; a morte do Pai, não. E mais
isto: aos doze anos, ocorreu-lhe de repente (também num Junho inclemente de sol
incendiário) que o Pai poderia morrer um dia. Tal eventualidade escandalizou-o.
Estava no quarto da casa paterna. Brincava com lápis-de-cor e calendários,
arredondando os dias aniversários da Família com cores diferentes: a Irmã a
cor-de-rosa; o Primeiro-Irmão a roxo; o Segundo-Irmão a castanho; o
Terceiro-Irmão a verde; os Gémeos Quarto & Quinto, a laranja &
encarnado; e o dele a amarelo; o do Pai, a azul; e o da Mãe, a mesma rosa da
única Filha. Então, quando azulava o 10 de Abril paterno, a possibilidade de
lhe morrer o Pai. E o baque gástrico: como se o coração tivesse passado a morar
no estômago. Abandonou brincadeira & quarto, saiu para a torreira solar que
deflagrava no pátio, deu água aos cães antes de os desacorrentar, foi com eles
para o monte colher os espargos do esquecimento e o caule do funcho que uns
poucos anos depois lhe haveria de perfumar, escarchando-o, o anis da orfandade
adulta.
Tais
lembranças tornaram-se ora crónica de jornal. A vida tornou-se Outubro – mas a
inclemência solar é a mesma. Tenho a boca a cheirar a funcho. Antes fosse a
espargos.
19/10/2017
Fora, Pedro! Bem-vindo, Tomé! - Rosário Breve n.º 526 in O RIBATEJO de 19 de Outubro de 2017 - www.oribatejo.pt
Fora, Pedro!
Bem-vindo, Tomé!
Ando
há tempos para V. dar conta de dois livros intimamente ligados a Santarém cuja
leitura fiz com zelo, lápis, agrado e proveito. Ainda não vai ser desta. E
ainda não vai ser desta porque a chaga incendiária – que nos mata tanta gente,
nos destrói tantas habitações, nos arrasa tantas matas e nos pulveriza tantas empresas
– é a recorrente e implacável temática de cada dia, semana a semana, mês a mês.
Pus-me
a odiar São Pedro, coitado do barbudo das chaves-do-Céu.
Na
minha mocidade (e na Vossa), as estações eram quatro: e começavam à hora
marcada do dia certo. A Primavera existia, vinha no bico das andorinhas, o
arvoredo rejubilava, a temperatura era suave & adequada. O Verão
amarelejava de grandes fenos, extensos trigais, fundia o azul do céu no azul do
mar, os rios ainda não eram fossas pecuárias. O Outono? Era todo Vivaldi:
revoadas de folhas revoluteando como arcadas de violino, havia o prazer das
luvas de lã, as botas de borracha pelas ruas de terra sem macadame. O Inverno
era frio conforme a competente e obrigativa disposição legal desse tal São
Pedro que, naqueles bons tempos, trabalhava bem & devagar. Tudo isto deu o
berro. Tudo isto ardeu.
A
estiagem prolonga-se indecentemente há meses de mais. Em plena segunda metade
de Outubro, a brutidade solar, sem ozono que superiormente a estorve,
esturrica-nos a nossa própria sombra, que, pelo chão, feita carvão, se
esbraseia mais do que nós até. É uma coisa intolerável, este calor sem freio
nem calendário. É um túnel de fogo sem água ao fundo. E o imbecil do Trump a
rasgar acordos pró-climáticos. E o aqueci/esqueci/mento global. E os glaciares
a virem por aí a baixo feitos sopa. Porra, porra, meus senhores.
Como
poderia eu, pois, cronicar-vos a mote das minhas leituras pró-santarenas?
Livralhada agora, agora que por todo o lado só se lê, vê & ouve que “Olha, subiu o número de mortos; olha, mais
uns tantos desaparecidos; olha, os feridos não param de aumentar…”? Ná,
leiturices para ninguém.
Eu
exijo que chova como deve ser. Estamos em Outubro, catano! Quero o frio que nos
é devido em Novembro para podermos matar & escorrer com limpeza e sem
mosquedo calorífero & putrefactor o belo porco enquanto roemos a bela
castanha assada – ou cozida com funcho.
E
olha, ó Pedro tão pouco São, vê se te reformas e dás lugar a outro. Olha, dá-o a
São Tomé, por exemplo, que só haveria de crer
numa política territorial anti-fogos quando houvesse alguma para ver.
12/10/2017
(f)Actos da minha vida - Rosário Breve n.º 525 in O RIBATEJO de 12 de Outubro de 2017 - www.oribatejo.pt
(f)Actos da minha
vida
1 Descalço, saltei
do muro para a banda do monte, cortei-me no pé direito, sangrei muito – e ainda
sangro. Não singro, mas sangro.
2 Abraçava os meus
cães & os alheios, beijava-os no rosto, sentia deles o frémito humano,
olhos de quem entendia o que se lhes dava: como tão pouca gente-gente entende.
Ou é beijada.
3 Aprendendo a fumar
(às ocultas do entardenoitecer, encostado ao portão da quinta), volvi-me, até
estatu(t)ariamente, uma imitação de adulto. Continuo ambos: fumador & simulacro.
4 Os mendigos
batiam-nos à porta muito delicadamente. Se era meu Pai a atendê-los, tinham
menos má-sorte. Se era minha Mãe, pobre ela também, tinham boas palavras e não
mais que cinco tostões. Se era eu, aprendia a ser delicado no bater às portas.
Até hoje.
5 As raparigas:
deixando de ser meninas, obrigaram-me a tornar-me rapaz. Em paz elas & eu,
agora.
6 A Muda dos
Tremoços: esperta, ladina, pobre – mas sobrevivente, criadora de gente, de si
mesma banca & fruto & sal & tostão.
7 O Leandro
Jardineiro: bêbado, blasfemo, praguejador, admoestador, terror das crianças –
um vero santo católico, portanto.
8 Na vertical, era,
naquela altura, um colosso: seis pisos de armazenamento industrial. Um deles,
de botijas de gás. Deu-se o incêndio. O povo foi ver. Eu também era povo. De
súbito, a explosão: foi a nossa Hiroshima. Mais de quarenta anos passados,
continua a ser o raso chão a que se viu desfeito. E nós japoneses, por assim
dizer.
9 O sr. Eduardo da
Rua do Leitão que morreu na linha: vinha apeado da bicicleta para a travessia,
deixou passar o primeiro comboio, não contava com o segundo. O povo foi ver. Eu
também era povo. Aquele lençol da mulher-guarda-da-linha guardando o mistério
do corpo, a escandalosa rosa de sangue florindo o pano: inesquecível floricultura.
10 A minha Irmã, de
blusa verde, menina & moça qual rouxinol-bernardino, à janela. Sem pose,
alheia ao fotógrafo: rosa verde, antítese daquela que vi no lençol da morte
ferroviária.
11 Naquele tempo
infante, os Verões não eram a calamidade pública que hoje são. Os Julhos eram
passados na Figueira da Foz. A Mãe arrendava a mesma casa. Aos fins-de-semana,
o Pai reunia-se-nos. Isso não volta. Eu não era, então, a calamidade privada
que hoje sou. Mas a Mãe era o Verão. Em pessoa. E é ao sol dela que escrevo
quanto escrevo. O Pai chega sábado.
12 Linda como uma
conspiração de açucareiros, aquela Maria dos meus dezassete anos embebedou de
clorofila a incipiente árvore púbere do meu coração. Depois, rachou-ma em
cavacos imprestáveis até para outros lumes. Habituei-me a sentir-me embebedado.
Por Ela. Sem Ela. Contra Ela. E contra mim, em minúsculo pronome.
13 Os Irmãos: seis,
todos mais velhos – ou, por assim dizer, os meus mais recentes & mais
vitalícios antepassados.
14 A Minha-Rua: era
um país. É hoje um desconsolado consulado de marcianos que não falam a Língua
nem se lembram dos senhores Nunes, Catarino, Gonçalves, Velindro, Pimentel,
Ribeiro, Alcides, Pereira, Morais, Sério, Botelho, Alfredo, Sacramento,
Carvalho, Abrunheiro.
15 Quando chovia: o
cedro do meu prédio semelhava uma labareda negra de verd’outrora à Van Gogh; as
mulheres zumbiam no recolher à pressa das camisas crucificadas do estendal; o
senhor Carlos da taberna-carvoaria cainhava gemebundamente: “Estava-se-mesm’-a-ver-qu’ia-chover-estava-se-mesm’-a-ver-qu’ia-chover”;
e o cedro do meu quintal era o senhor Carlos a cainhar mas em versão Vincent de
cinema-mudo.
16 As Fábricas:
morreram todas. Corrijo: mataram-nas. Foi então que vieram os marcianos. E foi
então que veio a outra Língua, que de nomes antigos nada sabe nem a cedros à
chuva entende, quando o céu chove como a olhos acontece, certas vezes. Ou a
cães, quando beijados.
20/07/2017
PARDAIS ESPERTOS & FANTASMAS BENIGNOS - Rosário Breve n.º 515 in O RIBATEJO de 20 de Julho de 2017 - www.oribatejo.pt
Pardais espertos
& fantasmas benignos
1 Há muitos anos que o Verão e eu nos não damos bem.
Prefiro-lhe épocas mais moderadas, mais temperadas, menos brutais, menos
inabitáveis. Como no entanto ele é que manda, fecho-me mais em casa, cerrando
cortinados e estores para que a sombra me proporcione a ilusão de uma frescura
que de facto não há.
Faço
por não vegetar. Tenho fartura de livros que há anos me esperam a visita
demorada. De raro em raro, um documentário televisivo cativa-me a atenção. E há
sempre a internet, arca sem fundo de motivos de (muito) interesse, uma vez
filtradas as fontes.
O
mais curioso de tudo isto é a amálgama. Refiro-me ao emaranhado de informações
que chegam, estão e se vão embora, deixando todavia fragmentos que se me
incrustam na lembrança e que, aqui e ali, a este (des)propósito ou por aquela
sem-razão, arranjam maneira de irromper do olvido para que tudo, afinal, tende.
Se
a velhice lograr desarranjar-me os fusíveis mentais, vai ser bonito. Hei-de dar
por mim a reportar à senhora auxiliar de enfermagem que o meu pianista
preferido, Bill Evans, teve um fim trágico, não sei já bem porquê nem como,
acho que droga, senhora doutora, a morte de um irmão, coisa assim. E nisto, a
cada 10 de Junho, na minha cabeça não ser Portugal o cerne da efeméride mas a
vila francesa de Oradour-sur-Glane, que nesse dia de 1944 foi martirizada pelos
criminosos da Divisão Das Reich das
Waffen SS. Ou farrapo histórico afim.
Por
enquanto, todavia, a coisa vai-se dando & andando. Mormente desligado, o
televisor não é capaz de encher de moscas oleosas o ar da casa. (Para mais,
tenho de concluir por estas horas uma encomenda de trabalho que eu há muito
deveria ter satisfeito. A ela tornarei em concluindo esta crónica.)
2 Concedo-me um breve interlúdio a horas decentes. Vou à
pastelaria da praça e fumo dois cafés. Levo pão e arroz no bornal. A passarada
conta comigo há anos já. Com discrição, vou atirando bolitas de miolo ao
arrebol. A pardalada, esperta, aparelha-se em lugares estratégicos. É um festim
que invariavelmente me paga o dia. Hoje, tenho o elogio da agricultura tal como
versejado pelo romano Virgílio. No outro dia, foi a galega Rosalía de Castro,
senhora que sabe estar. Camões aparece muitas vezes mas já sem pala: usa agora
uma lente fumada tipo Ray-Ban que lhe
não assenta mal. Outros delicados fantasmas devassam a esplanada. Alguns
brincam a correr atrás do pão dos pássaros, fingindo uma fome e uma infância de
que há muito se livraram. Guilherme d’Azevedo é um. Gervásio Lobato, outro.
Continuam portugueses na eternidade esquecida que os nimba. De chitas humildes,
vem a senhora catalã Mercè Rodoreda. Não me falta gente. Livre de corpo físico,
é malta que faz bem ao velho que aprendo a ser sem grande esforço nem proveito
por ‘í além.
E
nisto se vai escoando o Verão assassino dos grandes incêndios e das caloraças
irrespiráveis. Que o Diabo o carregue – como a mim me há-de carregar também,
sendo tempo disso. E tu não estejas a rir-te.
13/07/2017
CRÓNICA BADAGAIO-GEOLÓGICA - Rosário Breve n.º 514 in O RIBATEJO de 13 de Julho de 2017 - www.oribatejo.pt
Crónica
badagaio-geológica
1 Decidi tornar do
domínio público um terror meu que décadas a fio tenho mantido secreto. É um
cagaço simples de explicar, embora mui complicado de sofrer: tenho medo de se
me dar o badagaio em plena rua – e comigo carregado de papéis privados como
sempre ando. Atenção: não é do badagaio que tenho medo. Toda a gente acaba por
ter um: merecidamente mais cedo, uns; outros, injustamente mais tarde. Não é
por aí que sinto miúfa. É pelos papéis.
2 Os meus papéis. Esses
a que aponho a minha caligrafia. Aqueles onde estou todo: diminuído e por rever.
E se de repente adorno na calçada, sim, eu de olho já vítreo, já de fio de baba
tipo caramelo a sublinhar-me o beiço de baixo, o pernil aos esticõezinhos
larilas de disco-dance? E se derrepentemente os meus mil-e-um papéis
se põem a imitar as borboletas ao fim do quarto-dia de crisálida? Há-de ser o
diabo duas vezes para mim: porque morro ao cabo de tanto me ter habituado a
haver nascido e porque nunca mereci Deus, meu Deus.
3 A coisa é que já tenho tido ominosos
prenúncios dessa cómica tragédia de morrer de bornal aberto em plena rua.
Contexto: eu sou um velho resistente às modernices dos tablets. Para mim, escrito-de-escrever-para-ser-lido é lápis e/ou
caneta sobre papel que chie ao ser rasgado ou a limpar alguma reentrância do
corpo. Borrão ou borracha, para mim – nada de merdices electronipónicas
inventadas na Finlândia e cagadas em massa na China para lucro dUSAmericanos.
De modo que papéis – centenas e centenas de verbetes avulso que a granel
acarreto na minha sacola por atacado. Dias de vento em que por distracção ande
de mochila aberta – rai’s partam isto! – e estilhaça-se o ar do desperdício
voador que é tudo quanto tenho escrito.
4 Se fosse hoje, por
exemplo. Jesus Senhor. Belzebu meu. Se hoje fosse que os pés se me juntassem
com vocação de marmórea tabuleta, contai comigo, contai assim comigo de lábios
abertos: 24 verbetes com puerilidades inconsequentes de Ricardo Gonçalves; 72
trechos de primeira-água copiados dos outros cronistas dO RIBATEJO para que pareçam meus daqui a uns meses quando o plágio
for já indetectável (ando há dez anos nisto e até hoje ninguém topou a marosca,
muito menos os próprios); duas berlaitadas das rijas contra o Ministério
Público acusador de 18 agentes da esquadra da PSP de Alfragide por terem
(re)agido como se calhar deve ser às insolências intoleráveis dos “jovens” da Cova da Moura, esses
inimputáveis santinhos do altar do politicamente-correcto; mais duas
gaitadas irreverentes contra os senhores juízes que se esquecem de ser órgão de
soberania em hora de greve por mais uma posta de guito e uns reajustes orgânicos
de carreira-estatuto, coitados, que só de subsídio de alojamento mamam 750
mensais dele; e mais ainda uma
carrada de papéis com marcas de humidade mineral.
5 “Marcas de humidade mineral”? Sim, marcas de
humidade mineral. Explico-me bem e depressa: na ânsia de se me não tornarem
voadores os papéis quando ocupo a esplanada de meu escrivão costume, junto
& ergo do chão, antes de ocupar posto, uma data de calhaus. Deles munido,
sento-me. Saco dos papéis. Cada maço, cada pedra. Faço uma figurinha muita jeitosa. Nunca fui conhecido pelo
que escrevo. Foi sempre pela quantidade de grotescos tabuleiros de damas que
iço ao tampo da mesa. Julgais, todavia, que é só gozo que mereço? Julgais mal.
Tomai e comei todos:
6 Aqui há uns anitos, lá vinha
eu para uma esplanada parecida com esta de onde vos cronico agora mesmo. Ritual
de sempre: mesa escolhida, pedras apanhadas, cu na cadeira, sacola aberta,
papéis, pedra-maço, maço-pedra. Naquele dia, eu tinha muito que escrever – para
aí uns oito linguados de geologia.
Foi então que, out of the blue (como
dizem USAmericanos quando uma mulher maravilhosa aparece das periferias do azul
com o nosso destino a sangrar das unhas), me apareceu uma morena perfumada de
até-que-enfim. Trazia consigo um pesa-papéis de ouro cujo quilate era, à justa,
suficiente para a núbil confecção de duas alianças.
Era
a Graça. Aceitei. Casámo-nos. É desde então que tenho tido o tal medo. O medo de,
morrendo, ser finalmente lido como deve ser pelos calhaus.
06/07/2017
OXALÁ QUE PERGUNTAR OFENDA - Rosário Breve n.º 513 in O RIBATEJO de 6 de Julho de 2017 - www.oribatejo.pt
Oxalá que perguntar
ofenda
1 Sei as respostas, mas faço as perguntas na mesma:
a) Não seria bem mais
acertado gastar em bombeiros o que se gasta em tropa, gastando em tropa o que
se gasta em bombeiros?
b)
Se a tropa nem as próprias armas consegue guardar, a tropa serve para quê e/ou
a quem?
c)
Um bombeiro vale quantos generais?
2 A pergunta da alínea a) chega a ser pouco discutível. Chega o calor, esfregam as mãos os
privados que alugam meios aéreos por uma fortuna. Ao mesmo tempo, as aeronaves
da tropa praticam as belas rendas da teia d’aranha (quando não andam ocupadas a
queimar combustível caríssimo em solenes aparatos perfeita, absoluta e
absurdamente inúteis). E os submarinos, não esquecer os tristemente célebres
submarinos-catrinetas de guardar o carapau da costa.
3 À caricata questão escarrapachada em b) há que juntar a rábula das messes
roubadas pelos seus próprios (in)fiéis-de-armazém. A credibilidade e o pundonor
da instituição castrense são atirados à lama por gente aparentemente incapaz de
viver com o próprio pré num País que fora dos quartéis pratica essa ofensa
colectiva chamada “salário mínimo”. Brio, decoro, honradez, amor-próprio,
dignidade, distinção, decência militar – tudo se esfuma à vista de uma sacada
de batatas sobrefacturada à conta do civil. Mais o tal armamento ao dispor do
primeiro filho-de-uma-velha que, com
conhecimentos lá dentro, passe a horas certas nos intervalos da chuva e das
sentinelas na zona do paiol.
4 Quanto à c), calma.
Para de todo não resvalar em demagogia fácil, devo dizer que conheço em pessoa alguns
bombeiros fraquitos e uns tantos oficiais, sargentos & praças
decentíssimos. Como dizia o outro, “nada
do que é humano me é estranho”. O problema, todavia, sobrepassa em muito a
excepção para consagrar a regra. E cá está: por regra, o bombeiro dá-se todo a
uma causa humanitária sem esperar nem mordomias nem alcavalas, antes
sacrificando o seu tempo, a sua família, o seu ganha-pão e a sua saúde; o
general – sejamos francos de uma vez por todas – tem camaradas a mais para a
mesma teta.
5 Variando o tiro e o jacto da mangueira, preciso ainda
de dizer-vos alguma coisa sobre o Concerto
do Peido. É como muita malta chama àquela coisa muito lindinha dos artistas
angariando fundos para acudir às vítimas (sobreviventes) do incêndio de 17 de
Junho último. Fiquei (ficámos todos) a saber que a receita de milhão e meio de
euros angariada com o tal concerto de solidariedade (mais chamadas telefónicas)
foi entregue à União das Misericórdias. Não foi entregue ao fundo especial do
Estado. Não foi entregue às autarquias directamente lesadas. Não foi sequer
entregue, hélas!, aos Bombeiros. Não.
Foi entregue à Igreja, via aquela rede de instituições (tutelada por Santana
Lopes) que quer ser banco ou coiso assim.
O autarca de Pedrógão Grande, em solidariedade com os outros dois executivos
municipais afectados pela tragédia (Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra),
já manifestou revolta e desconcerto perante tal aberração. O peido deu borrada.
E tresanda.
6 Já agora que estou numa de acirrar novos inimigos, a greve
da enfermagem. Não avalio nem contesto a greve da enfermagem – mas acho
perversa a ameaça aos partos. Há limites que a razoabilidade deve traçar – e
mínimos limítrofes. Não é a mesma coisa que os professores ameaçarem greve aos
exames. Não é mesmo a mesma coisa. Haja juízo. A enfermagem é tão indispensável
quanto a classe médica. Dúvida nenhuma sobre tal. Mas calma: o parto é
inadiável por sua mesma natureza. Pés na terra, pessoal. E os pés não são para
levar tiros.
7 Termino pelo título. “Oxalá que perguntar ofenda” – é mesmo o que eu queria dizer. E
ainda quero. E disse. É preciso incomodar quem nos faz mal. Sem medo nem
hesitação. É preciso inquietar quem vive de nos comer as papas na cabeça. Eu
sei que não é uma croniqueta que resolve o assunto. Careca de saber isso estou
eu, que todavia me ponho sempre em cabelo para mandar umas bojardas de se lhe
tirar o chapéu.
29/06/2017
HOMO CUNICULUS HOMINI - Rosário Breve n.º 512 in O RIBATEJO de 29 de Junho de 2017 - www.oribatejo.pt
Homo cuniculus
homini
1. Na madrugada do 29.º aniversário de Fernando Pessoa, 14
bombardeiros alemães descolaram de uma base situada algures naquela Bélgica
então por eles, alemães, martirizada e ocupada. A meio dessa manhã ominosa, as
bombas destruíram uma escola do East End londrino, matando 18 crianças. Pela restante
capital britânica, mais 162 súbditos de Sua Majestade Jorge V ganharam direito
à eternidade anónima dos cordeiros imolados na ara e na era dos impérios. O
bombardeamento de civis é hoje banalíssima coisa de dois minutos entre assuntos
de futebol e frivolidades meias-lecas no alinhamento dos noticiários – mas na
altura foi excentricidade e aberração que parecia e caiu mal, por nada
cavalheiresca nem romântica. O sentimento anti-germânico que já então grassava
entre os ingleses tornou-se amotinante fobia xenofóbica, a ponto de a própria
Família Real, ela própria geneticamente teutónica, ter de abandonar a pesada
nomenclatura dinástica que era a sua para adoptar a hoje ainda vigente. Ou
seja: passou a Casa de Windsor ao renegar-se como parente relativa da
genealógica House of
Saxe-Coburg-Gotha-Hanover-Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg-Hohenzollern.
2. Estes factos de 13 de Junho de 1917 poderiam não ter
visto luz nem haver passado à fria História real. Bastaria que o governo britânico
de então tivesse como primeiro-ministro, não David Lloyd George, mas Pedro
Passos Coelho. O meu raciocínio é simplicíssimo: com o nosso compatriota na
posse da chave do n.º 10 da Downing Street, as crianças do East End não teriam
escola a que ir – e a Inglaterra do primeiro quartel do século XX
subjugar-se-ia sem luta, e com gosto até, aos ditames imperiais e imperiosos da
Berlim do Wilhelm II, à exacta imagem & semelhança do que viria a fazer
Portugal um século depois aos pés da Berlim da Merkel I. Com o tal Coelho na
cartola, claro. Para evitar que a Alemanha nos (dia)rreie morte aérea em cima
dos chavelhos, nada como ser muito austeritário, muito obediente, muito “bom aluno”. Numa palavra, muito coelho, não um pouco lobo. Daí o título
que encima esta crónica.
3. Agora assim: Passos Coelho é um dos meus cómicos
favoritos. Corrijo: Passos Coelho é um dos meus tragicómicos preferidos. Nesta
rábula dos suicidas pós-incêndio que afinal se não mataram, o dito senhor foi
coerente – ele próprio é, politicamente, um suicídio por confirmar. Usando o
mesmo Pessoa que fazia anos a 13 de Junho entre 1888 e 1935, Coelho é um “cadáver adiado”. Só não procria grande
coisa. Aquilo não foi uma mera tirada infeliz – aquilo é um modo de vida. E um
modo de vida é invariavelmente o que resulta da negociação entre o que somos e
o como estamos. As desculpas que depois gaguejou, a mim não me arredaram da
profunda repugnância de imediato sentida – nem do invencível asco; nem da
psoríase fatal que fatalmente me causa a urticária de politiqueiros destes.
4. Na ética jornalística que ainda pratiquei, suicídio não
era notícia, a não ser em casos muito, muito especiais. Exemplo-mor: o caso de Thích
Quảng Ðức. Foi noutro
Junho. Em Saigão, a 11/6/1963, este monge budista imolou-se pelo fogo em
público e em protesto contra a orientação religiosa de Ngo Dinh Diem, eminência-parda
que era, por assim dizer, o Passos Coelho dos vietnamitas em relação a
USAmericanos. Tirante casos destes, suicídio continua a ser matéria merecedora
de discreto pudor. A não ser, parece, que um obscuro zé-ninguém de provedoria
local de misericórdias com veleidades de candidato laranjinha a autarca nos sopre ao pavilhão auditivo um boato
maldoso para arremesso político-partidário. Nesse caso, e para o Coelho, um
mexerico sem fundamento é cenoura que baste. Daí a tragifarsa acontecida aos
olhos de toda a gente. Enfim: Pedrógão é Grande, Passos Coelho é pequenino. Shame on you, sir.
5. Os mortos e os feridos daquela Londres de Junho de 1917
& os feridos e os mortos nossos de um exacto século depois devem ser-nos
credores do maior respeito e da mais assisada e mais condoída discrição.
Invoquei-os tão-só para ajudar a destruir uma comédia triste – triste e infeliz
e coelhamente portuguesa. Foi por isso que fiz por esfrangalhá-la em tiras e em
chiste. É que eu nem em criança, por mais bombocas
com que tentassem seduzir-me, fui muito de ir com coelhos e pais-natais ao
circo. A barraca é que não pára de vir ter comigo. Mas eu sou homem para gostar
mais de pão do que de circo. Daquele pão-nosso-de-cada-dia, não daquele circo
que se monta e daquela barracada que se arma sempre & de cada vez que o Cuniculus descerra a abertura anterior
do tubo digestivo, vulgo boca.
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