Pardais espertos
& fantasmas benignos
1 Há muitos anos que o Verão e eu nos não damos bem.
Prefiro-lhe épocas mais moderadas, mais temperadas, menos brutais, menos
inabitáveis. Como no entanto ele é que manda, fecho-me mais em casa, cerrando
cortinados e estores para que a sombra me proporcione a ilusão de uma frescura
que de facto não há.
Faço
por não vegetar. Tenho fartura de livros que há anos me esperam a visita
demorada. De raro em raro, um documentário televisivo cativa-me a atenção. E há
sempre a internet, arca sem fundo de motivos de (muito) interesse, uma vez
filtradas as fontes.
O
mais curioso de tudo isto é a amálgama. Refiro-me ao emaranhado de informações
que chegam, estão e se vão embora, deixando todavia fragmentos que se me
incrustam na lembrança e que, aqui e ali, a este (des)propósito ou por aquela
sem-razão, arranjam maneira de irromper do olvido para que tudo, afinal, tende.
Se
a velhice lograr desarranjar-me os fusíveis mentais, vai ser bonito. Hei-de dar
por mim a reportar à senhora auxiliar de enfermagem que o meu pianista
preferido, Bill Evans, teve um fim trágico, não sei já bem porquê nem como,
acho que droga, senhora doutora, a morte de um irmão, coisa assim. E nisto, a
cada 10 de Junho, na minha cabeça não ser Portugal o cerne da efeméride mas a
vila francesa de Oradour-sur-Glane, que nesse dia de 1944 foi martirizada pelos
criminosos da Divisão Das Reich das
Waffen SS. Ou farrapo histórico afim.
Por
enquanto, todavia, a coisa vai-se dando & andando. Mormente desligado, o
televisor não é capaz de encher de moscas oleosas o ar da casa. (Para mais,
tenho de concluir por estas horas uma encomenda de trabalho que eu há muito
deveria ter satisfeito. A ela tornarei em concluindo esta crónica.)
2 Concedo-me um breve interlúdio a horas decentes. Vou à
pastelaria da praça e fumo dois cafés. Levo pão e arroz no bornal. A passarada
conta comigo há anos já. Com discrição, vou atirando bolitas de miolo ao
arrebol. A pardalada, esperta, aparelha-se em lugares estratégicos. É um festim
que invariavelmente me paga o dia. Hoje, tenho o elogio da agricultura tal como
versejado pelo romano Virgílio. No outro dia, foi a galega Rosalía de Castro,
senhora que sabe estar. Camões aparece muitas vezes mas já sem pala: usa agora
uma lente fumada tipo Ray-Ban que lhe
não assenta mal. Outros delicados fantasmas devassam a esplanada. Alguns
brincam a correr atrás do pão dos pássaros, fingindo uma fome e uma infância de
que há muito se livraram. Guilherme d’Azevedo é um. Gervásio Lobato, outro.
Continuam portugueses na eternidade esquecida que os nimba. De chitas humildes,
vem a senhora catalã Mercè Rodoreda. Não me falta gente. Livre de corpo físico,
é malta que faz bem ao velho que aprendo a ser sem grande esforço nem proveito
por ‘í além.
E
nisto se vai escoando o Verão assassino dos grandes incêndios e das caloraças
irrespiráveis. Que o Diabo o carregue – como a mim me há-de carregar também,
sendo tempo disso. E tu não estejas a rir-te.
2 comentários:
Estou estou :)) desde que conheci este espaço já lá vão uns tempos (por um marinheiro com sede em Oslo e com blog que sempre visito e a quem nunca dirigi palavra) que aqui venho beber as crónicas do Daniel.
Sempre que o leio vem-me à memória um escritor/jornalista falecido recentemente.
Sinta-se sempre bem-vindo, Adelino. Muito grato pelas suas palavras. E o "marinheiro com sede em Oslo", idem.
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