No táxi 17 do
senhor Silva
(ou Um doutor de
rostos)
Aconteceu-me
a 3 de Novembro do corrente ano. Eu tinha passado a manhã, a hora de almoço e
mais duas horas a escrever. Coisa infelizmente rara, chovia. Eu tinha um euro e
sessenta cêntimos na algibeira. Por volta das quatro da tarde, entreguei à
gerência do Café os sessenta cêntimos da bica.
Pus-me então a pé, de derradeira moeda de euro no bolso, a caminho de outro
estabelecimento onde pudesse aproveitar o entardenoitecer para escrever ainda
mais qualquer coisita. Aproveitei uma aberta pluvial e ala que já era (de)
tarde. Fui andando. Voltou a chuviscar a meio do meu percurso. A descer, todos os santos ajudam, mas a
subir nem o Diabo empurra. Ora, eu ia subindo.
Foi
então que a meu lado, a meio de uma ladeira mais íngreme do que a minha
carreira literária, parou um táxi. Disse-me o senhor taxista assim: “ – Amigo, para onde vai?” Eu
respondi-lhe que “para tal parte
assim-assim”. E ele para mim: “Calha
bem. Vou buscar aí mesmo um cliente. Entre, amigo, que está de chuva. Temos de
ser uns para os outros.” Eu fiquei siderado. Ainda tentei dizer-lhe que não
trazia comigo dinheiro nem para a bandeirada
da porta do lugar-do-morto. Ele, todavia, nem quis saber. Mandou-me entrar sem
encargos quaisquer. Entrei. O trajecto era breve, mas deu para frases trocadas.
Ele
disse-me que era o Silva do Táxi 17. E mais disse: “ – Eu parei porque vi que a sua cara era a de um homem sério, honesto
e trabalhador. Vai daí, nem hesitei. Dou-lhe boleia com todo o gosto. Sabe, eu
ando nesta tarimba de taxista há 51 anos. Já sou uma espécie de doutor de
rostos. Tiro-os logo pela pinta.”
Depois,
perguntou-me de onde eu era. Eu disse-lhe a verdade: “ – Sou daqui perto, dali da Pedrulha.” E ele então assim para mim:
“– Essa é boa. Tenho lá um concunhado. É
o António Lucas, conhece? Ele é casado com a irmã da minha mulher. A minha é
Natalina e a dele é Maria.”
Eu
conhecia, claro. E repeti-lhe a banalidade de o mundo ser pequeno. E
acrescentei: “ – Mas a sua bondade para
comigo não é pequena como o mundo. Fico-lhe muito grato.”
Deixou-me
na esplanada que eu almejava. Fiquei sem poder escrever uma linha. Tinha sido
“vítima” de um acto filantrópico da parte de um desconhecido. Não podia ser. De
novo a pé, rumei à minha terra. Fui a casa do meu Amigo Tonito Lucas.
Contei-lhe o que se tinha passado. Já era esta crónica em andamento.
E
o Tonito assim para mim: “ – Eh pá,
tiveste sorte! O Silva é um porreiraço. Entre colegas da profissão, até lhe
chamam “doutor”. Ele sabe tudo do
ofício e não se importa nada de ensinar os mais novos no ofício.”
Pedi-lhe
mais esclarecimentos. O senhor Silva é homem para 75, 76 anos. É casado desde
sempre com a Natalina, irmã da Maria do Lucas. É ali de Vale de Marelo, Semide.
Tem duas filhas (Margarida e Catarina) e dois netos (Fábio e Ricardo).
Trabalhou desde cedo em fábricas de fiação. Depois fez tropa em Moçambique. Ainda
trabalhou para o Serviço de Águas e Saneamento do município de Coimbra. Passou
depois a taxista empregado. Logo que pôde, tirou alvará profissional e
tornou-se patrão de si mesmo. Até hoje. Ou: até dia 3 de Novembro passado,
jornada de chuva em que me deu boleia sem ser por esmola mas por pura
solidariedade humanista.
Lembro-me
de ele me ter perguntado o nome. Eu disse-lhe a verdade: “ – Sou Daniel.” E só então percebi toda a verdade: havendo-me dito
ele que o meu rosto era de homem sério,
honesto e trabalhador – e para mais chamando-me Daniel –, o senhor Silva do
Táxi 17 não me tinha dado boleia a mim. Tinha antes, sim, tirado da chuva o
senhor meu Pai. Esse sim sério, trabalhador e a honestidade em pessoa. Ou por outras
palavras: o senhor Daniel meu Pai, sócio póstumo do senhor Silva do Táxi 17.
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