Escrevo sempre a
mesma coisa, ora vejam
1 (2006) – Antuzede, o Sol mais total deste mundo. Tenho quatro anos. Há
funeral de alguém velho, alguém da terra do Pai. O Pai leva-me. Recordo a
totalidade pânica do Sol. Em descampado (ou em esta mesma Praça, tantos anos
depois’antes), a urna – negra, toda feita de sombra. A par do achado (sob um
cartão) no Pátio, é a minha primeira – quiçá definitiva – recordação. Isto tem
de estar a acontecer em 1968. Duvido de que possa ser já 1969. Comporto-me como
o principezinho que sou, filho tardio de um homem de 51 anos, à data do
funeral. Tenho eu hoje 53 feitos, sou mais velho do que essa versão do meu Pai.
Como é que isto pode (não) ser, verdade? Verdade. Mentira. Algures nessa cabeça
de quatro anos há já sinais desta de 53. Certa afinal serenidade ante o
descalabro da morte individual, o escândalo dessa lei não votada nem vetada.
Certa concertação resignada ante a totalidade, o absurdo, o corriqueiro, o é-igual-para-todos. (Muitos anos
depois’antes, aqui voltarei para inumar José, pai de Joaquim Jorge, Carvalho.)
O Tempo, como as medusas feitas de água translúcida, transparecendo-se de si
mesmo em volutas de luz + água + resíduos saibro-argilosos, cinema de um só
bilhete para a eternidade do Domingo. Nem alegria, nem tristeza, nem outrossim
agonia ou júbilo – mas tão-só uma espécie, não sei, sei lá, de sideral
serenidade baqueando de pau, bola & ponto ante as bancadas desertas, sobre
rala relva, que aliás o descampado do Morto-de-1968 não criava.
2 (2017) - Era uma lembrança veemente da primeiríssima infância: uma praça
árida cujo chão de terra aparecia queimado sem sombra nem clemência pelo sol
vertical de Junho; os cangalheiros haviam pousado o caixão, limpavam os rostos
com grandes lenços brancos; o morto esperava a retoma sem o mínimo queixume; as
mulheres eram perfeitos corvos de um negro quase azul, como o de certas noites;
e ele não podia, então, ter mais de quatro anos. A lembrança não era equívoca:
o funeral continuava a ter sido na aldeia natal do Pai, que o levava no
préstito pela mão do lado do coração. Não se tratava, por isso & não ainda,
do funeral do Pai. Era o de um homem que já era homem quando o Pai era menino.
E então, num golpe cerce, passara meio-século.
A
lembrança não era apenas veemente mas assaz recorrente ainda. Não lhe doía nem
o animava – era como o nariz a meio da cara sem ter de pensar nisso para que
continuassem a existir ambos: ele & seu nariz; a lembrança & ele. Era
também como o funeral do Pai: o funeral passara; a morte do Pai, não. E mais
isto: aos doze anos, ocorreu-lhe de repente (também num Junho inclemente de sol
incendiário) que o Pai poderia morrer um dia. Tal eventualidade escandalizou-o.
Estava no quarto da casa paterna. Brincava com lápis-de-cor e calendários,
arredondando os dias aniversários da Família com cores diferentes: a Irmã a
cor-de-rosa; o Primeiro-Irmão a roxo; o Segundo-Irmão a castanho; o
Terceiro-Irmão a verde; os Gémeos Quarto & Quinto, a laranja &
encarnado; e o dele a amarelo; o do Pai, a azul; e o da Mãe, a mesma rosa da
única Filha. Então, quando azulava o 10 de Abril paterno, a possibilidade de
lhe morrer o Pai. E o baque gástrico: como se o coração tivesse passado a morar
no estômago. Abandonou brincadeira & quarto, saiu para a torreira solar que
deflagrava no pátio, deu água aos cães antes de os desacorrentar, foi com eles
para o monte colher os espargos do esquecimento e o caule do funcho que uns
poucos anos depois lhe haveria de perfumar, escarchando-o, o anis da orfandade
adulta.
Tais
lembranças tornaram-se ora crónica de jornal. A vida tornou-se Outubro – mas a
inclemência solar é a mesma. Tenho a boca a cheirar a funcho. Antes fosse a
espargos.
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