Efeméride com asas
& garras
Novembro
é muito mnemónico para mim, tirante os outros onze meses de cada anuário. Vós
tendes lido que sim, não ireis agora desmentir-me sem sequer me dar cá por esta
palha.
Foi
a 1 de Novembro de 1981. Sétimo de sete filhos, era eu finalmente dono &
senhor do meu quarto de celibatário sem pulsões esquisitas de adolescente
esquizóide.
Seis
meses antes dessa fatídica data, um pardal perdido escabeceara em desespero a
vidraça da minha janela. Não tinha leme de navegação. Isto é: não tinha cauda.
Recolhi-o na terra como quem colhe do céu uma esmeralda castanha. Dizem que os
pardais não são de cativeiro. Coitados. Percebem nada da coisa. Os pardais,
como as pessoas que o mereçam, são de quem os ame – mesmo sem rabo. E cativeiro
nunca foi amor, a não ser nas Endechas
que Camões dedicou a Bárbara.
Chamei-lhe
Cachopo. Nunca mais saímos do quarto,
claro. Acabei o 12.º ano com a dificuldade própria dos maridos emigrados no
Luxemburgo que deixam na aldeia as mulheres ao deus-não-dará. Durante aquele
feliz semestre irrepetível, o meu Pardal escagaçou com alegria a minha colecção
completa das Obras idem do meu amado
Eça. E o meu Conan Doyle todo do meu Sherlock. E os meus primeiros Cortázar,
Calvino, Camilo, Camus: todos por C como
o meu Cachopo.
Dava-lhe
água de beber pela boca. Pela minha boca, digo. Ele sentia o copo a içar-se aos
meus lábios. Vinha logo, torto como o bêbedo que eu vim a ser, poisar-me na
cabeça. Descia-me a orelha pela suíça. E bebia-me da boca como jamais mulher
alguma foi jamais capaz de fazê-lo.
As
moscas gordas desse Verão foram a nossa comum alegria carnívora. Nunca
spray-fumiguei o meu quarto. Não, nada disso. Esperava por elas entre vidraça e
cortinados. Esmagava-as com a delicadeza que me é própria e que Vós tão bem
sentis nestas crónicas lacrimosas. Depois, sobre o mesmo papel onde eu já então
escrevivia os meus versos ilegíveis, dispunha-as em parada de morgue. O Pardal
vinha comê-las, uma a uma, como quem vai ali à cervejaria comer devagar o
bife-da-casa. O resto era A&A&A: Água, Arroz & Amor.
A
1 de Novembro de 1981, comigo fora de casa, o meu Irmão Fernando deixou-me
entreaberta a porta do quarto. Em casa de meus Pais, não trancávamos portas.
Era como (não) fazíamos ao coração – o que deu no que nos (não) deu para o resto
da vida.
Um
gato vizinho entrou e matou-(m)o. Dei com o meu Pardal sob as patas do felino,
morto já e pronto a ser comido como uma mosca das que eu criava para ele.
Pontapeei o gato com a força do desespero. O desespero deu para o gato ir bater
no caule do cedro a cinco metros de lonjura. Não consegui acabar de assassinar
o assassino. Mas nem eu era Cristo, nem o meu Cachopo podia ser Lázaro. Sepultei-o à vista da janela do quarto
que foi nosso. Usei uma caixa-de-fósforos de cozinha como ataúde. Não orei por
ele: Deus não existe.
Depois
disso, o mesmo gato levou-me o meu Irmão Jorge & os meus Pais. Mais alguns
Amigos. É um gato P&P&P: persistente, profissional, permanente.
E
nunca tem o rabo de fora, como Deus costuma ter.
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