(f)Actos da minha
vida
1 Descalço, saltei
do muro para a banda do monte, cortei-me no pé direito, sangrei muito – e ainda
sangro. Não singro, mas sangro.
2 Abraçava os meus
cães & os alheios, beijava-os no rosto, sentia deles o frémito humano,
olhos de quem entendia o que se lhes dava: como tão pouca gente-gente entende.
Ou é beijada.
3 Aprendendo a fumar
(às ocultas do entardenoitecer, encostado ao portão da quinta), volvi-me, até
estatu(t)ariamente, uma imitação de adulto. Continuo ambos: fumador & simulacro.
4 Os mendigos
batiam-nos à porta muito delicadamente. Se era meu Pai a atendê-los, tinham
menos má-sorte. Se era minha Mãe, pobre ela também, tinham boas palavras e não
mais que cinco tostões. Se era eu, aprendia a ser delicado no bater às portas.
Até hoje.
5 As raparigas:
deixando de ser meninas, obrigaram-me a tornar-me rapaz. Em paz elas & eu,
agora.
6 A Muda dos
Tremoços: esperta, ladina, pobre – mas sobrevivente, criadora de gente, de si
mesma banca & fruto & sal & tostão.
7 O Leandro
Jardineiro: bêbado, blasfemo, praguejador, admoestador, terror das crianças –
um vero santo católico, portanto.
8 Na vertical, era,
naquela altura, um colosso: seis pisos de armazenamento industrial. Um deles,
de botijas de gás. Deu-se o incêndio. O povo foi ver. Eu também era povo. De
súbito, a explosão: foi a nossa Hiroshima. Mais de quarenta anos passados,
continua a ser o raso chão a que se viu desfeito. E nós japoneses, por assim
dizer.
9 O sr. Eduardo da
Rua do Leitão que morreu na linha: vinha apeado da bicicleta para a travessia,
deixou passar o primeiro comboio, não contava com o segundo. O povo foi ver. Eu
também era povo. Aquele lençol da mulher-guarda-da-linha guardando o mistério
do corpo, a escandalosa rosa de sangue florindo o pano: inesquecível floricultura.
10 A minha Irmã, de
blusa verde, menina & moça qual rouxinol-bernardino, à janela. Sem pose,
alheia ao fotógrafo: rosa verde, antítese daquela que vi no lençol da morte
ferroviária.
11 Naquele tempo
infante, os Verões não eram a calamidade pública que hoje são. Os Julhos eram
passados na Figueira da Foz. A Mãe arrendava a mesma casa. Aos fins-de-semana,
o Pai reunia-se-nos. Isso não volta. Eu não era, então, a calamidade privada
que hoje sou. Mas a Mãe era o Verão. Em pessoa. E é ao sol dela que escrevo
quanto escrevo. O Pai chega sábado.
12 Linda como uma
conspiração de açucareiros, aquela Maria dos meus dezassete anos embebedou de
clorofila a incipiente árvore púbere do meu coração. Depois, rachou-ma em
cavacos imprestáveis até para outros lumes. Habituei-me a sentir-me embebedado.
Por Ela. Sem Ela. Contra Ela. E contra mim, em minúsculo pronome.
13 Os Irmãos: seis,
todos mais velhos – ou, por assim dizer, os meus mais recentes & mais
vitalícios antepassados.
14 A Minha-Rua: era
um país. É hoje um desconsolado consulado de marcianos que não falam a Língua
nem se lembram dos senhores Nunes, Catarino, Gonçalves, Velindro, Pimentel,
Ribeiro, Alcides, Pereira, Morais, Sério, Botelho, Alfredo, Sacramento,
Carvalho, Abrunheiro.
15 Quando chovia: o
cedro do meu prédio semelhava uma labareda negra de verd’outrora à Van Gogh; as
mulheres zumbiam no recolher à pressa das camisas crucificadas do estendal; o
senhor Carlos da taberna-carvoaria cainhava gemebundamente: “Estava-se-mesm’-a-ver-qu’ia-chover-estava-se-mesm’-a-ver-qu’ia-chover”;
e o cedro do meu quintal era o senhor Carlos a cainhar mas em versão Vincent de
cinema-mudo.
16 As Fábricas:
morreram todas. Corrijo: mataram-nas. Foi então que vieram os marcianos. E foi
então que veio a outra Língua, que de nomes antigos nada sabe nem a cedros à
chuva entende, quando o céu chove como a olhos acontece, certas vezes. Ou a
cães, quando beijados.
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