Crónica
badagaio-geológica
1 Decidi tornar do
domínio público um terror meu que décadas a fio tenho mantido secreto. É um
cagaço simples de explicar, embora mui complicado de sofrer: tenho medo de se
me dar o badagaio em plena rua – e comigo carregado de papéis privados como
sempre ando. Atenção: não é do badagaio que tenho medo. Toda a gente acaba por
ter um: merecidamente mais cedo, uns; outros, injustamente mais tarde. Não é
por aí que sinto miúfa. É pelos papéis.
2 Os meus papéis. Esses
a que aponho a minha caligrafia. Aqueles onde estou todo: diminuído e por rever.
E se de repente adorno na calçada, sim, eu de olho já vítreo, já de fio de baba
tipo caramelo a sublinhar-me o beiço de baixo, o pernil aos esticõezinhos
larilas de disco-dance? E se derrepentemente os meus mil-e-um papéis
se põem a imitar as borboletas ao fim do quarto-dia de crisálida? Há-de ser o
diabo duas vezes para mim: porque morro ao cabo de tanto me ter habituado a
haver nascido e porque nunca mereci Deus, meu Deus.
3 A coisa é que já tenho tido ominosos
prenúncios dessa cómica tragédia de morrer de bornal aberto em plena rua.
Contexto: eu sou um velho resistente às modernices dos tablets. Para mim, escrito-de-escrever-para-ser-lido é lápis e/ou
caneta sobre papel que chie ao ser rasgado ou a limpar alguma reentrância do
corpo. Borrão ou borracha, para mim – nada de merdices electronipónicas
inventadas na Finlândia e cagadas em massa na China para lucro dUSAmericanos.
De modo que papéis – centenas e centenas de verbetes avulso que a granel
acarreto na minha sacola por atacado. Dias de vento em que por distracção ande
de mochila aberta – rai’s partam isto! – e estilhaça-se o ar do desperdício
voador que é tudo quanto tenho escrito.
4 Se fosse hoje, por
exemplo. Jesus Senhor. Belzebu meu. Se hoje fosse que os pés se me juntassem
com vocação de marmórea tabuleta, contai comigo, contai assim comigo de lábios
abertos: 24 verbetes com puerilidades inconsequentes de Ricardo Gonçalves; 72
trechos de primeira-água copiados dos outros cronistas dO RIBATEJO para que pareçam meus daqui a uns meses quando o plágio
for já indetectável (ando há dez anos nisto e até hoje ninguém topou a marosca,
muito menos os próprios); duas berlaitadas das rijas contra o Ministério
Público acusador de 18 agentes da esquadra da PSP de Alfragide por terem
(re)agido como se calhar deve ser às insolências intoleráveis dos “jovens” da Cova da Moura, esses
inimputáveis santinhos do altar do politicamente-correcto; mais duas
gaitadas irreverentes contra os senhores juízes que se esquecem de ser órgão de
soberania em hora de greve por mais uma posta de guito e uns reajustes orgânicos
de carreira-estatuto, coitados, que só de subsídio de alojamento mamam 750
mensais dele; e mais ainda uma
carrada de papéis com marcas de humidade mineral.
5 “Marcas de humidade mineral”? Sim, marcas de
humidade mineral. Explico-me bem e depressa: na ânsia de se me não tornarem
voadores os papéis quando ocupo a esplanada de meu escrivão costume, junto
& ergo do chão, antes de ocupar posto, uma data de calhaus. Deles munido,
sento-me. Saco dos papéis. Cada maço, cada pedra. Faço uma figurinha muita jeitosa. Nunca fui conhecido pelo
que escrevo. Foi sempre pela quantidade de grotescos tabuleiros de damas que
iço ao tampo da mesa. Julgais, todavia, que é só gozo que mereço? Julgais mal.
Tomai e comei todos:
6 Aqui há uns anitos, lá vinha
eu para uma esplanada parecida com esta de onde vos cronico agora mesmo. Ritual
de sempre: mesa escolhida, pedras apanhadas, cu na cadeira, sacola aberta,
papéis, pedra-maço, maço-pedra. Naquele dia, eu tinha muito que escrever – para
aí uns oito linguados de geologia.
Foi então que, out of the blue (como
dizem USAmericanos quando uma mulher maravilhosa aparece das periferias do azul
com o nosso destino a sangrar das unhas), me apareceu uma morena perfumada de
até-que-enfim. Trazia consigo um pesa-papéis de ouro cujo quilate era, à justa,
suficiente para a núbil confecção de duas alianças.
Era
a Graça. Aceitei. Casámo-nos. É desde então que tenho tido o tal medo. O medo de,
morrendo, ser finalmente lido como deve ser pelos calhaus.
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