Cegueira, clarividência & circularidade do
latinismo “et cœtera”
Como tantas
pessoas, senão todas, vi & vivi já manhãs cegas & noites clarividentes.
Sobre umas como outras, os anos exerceram a sua autoridade tão obnubiladora
quão propensa à mera, cerce & inescapável obliteração.
Nem a umas lamento,
nem a outras louvo – limito-me a dar, de outras como de umas, essa espécie de livro-de-razão duplicemente chamado lucidez & resignação. Um mote subjaz, sólido, a estas voltas: a própria
eternidade se volve efémera quando exposta ao esquecimento.
É possível que
algumas circunstâncias loco-temporais da minha experiência logrem convencer o/a
Leitor/a a não desistir já da corrente crónica. Assim:
pela tarde de uma
sexta-feira natalícia de 1984, comprei, numa livraria de referência da Cidade
dos meus vinte anos, dois exemplares da tradução portuguesa de Ficciones, do argentino Jorge Luis (sem
acento) Borges (ed. Livros do Brasil, Lx., trad. de Carlos Nejas, revisão de
Maria Ondina & capa de Lima de Freitas, © 1969). Recordo tê-lo lido na
altura com o eufórico ardor de quem começa a reconhecer na (boa) Literatura uma
forma-de-vida preferível à vidinha
quotidiana.
Três décadas &
três anos depois, reencontrei-me com o meu exemplar – o gémeo que dele comprara
era de presente para um meu Irmão, mano que hoje, para nossa amargura, se
encontra bastante doente. Na manhã de 29 de Novembro do (ainda) corrente 2017,
atirei-me à releitura dessa obra magistral, cônscio embora de não ter já os
vinte anos d’aquando a primeira leitura & temeroso de os meus correntes
cinquenta-e-três, a-páginas-tantas de tantas páginas lidas desde tal remo(r)to
1984, me poderem ofuscar a memória dulcíssima do primeiro fascínio decorrente
da descoberta de Borges. Já me tem acontecido, isso de reler em plena madurez
livros que me (des)concertaram (n)a mocidade
– ficando-me o palato da mente por modos insalubre, insaciado: e
decepcionado algumas vezes, até.
Tal não foi tal,
desta vez. Ficciones (Ficções) continua a ser uma obra-prima
de curtos relatos – daquela concisão lapidar tão ao modo & do gosto
borgesianos. O Próprio J.L. Borges, no Prólogo
à primeira parte da obra (datado de “Buenos
Aires, 10 de Novembro de 1941” ),
é particularmente explícito quanto a este aspecto:
“Desvario laborioso e empobrecedor, o de compor vastos
livros; o de explanar em quinhentas páginas uma ideia cuja exposição oral cabe
em poucos minutos.”
(Monsieur Proust n’est pas d’accord, don
Jorge Luis!)
Como sempre faço em
face de livros bons, enriqueço-me de vocábulos & de locuções cuja partilha
pública acresce sobremaneira ao meu prazer privado. Tenha uma pérola dessas para Vós. A ostra de que provém é a pág.ª 123 da
sobredita tradução portuguesa:
“Pensou que, à hora da morte, ainda não teria concluído
o encargo de classificar todas as recordações de infância.”
Ora, por não ser
chegada (não ’inda) nem a minha nem a tua, ó Leitor/a, inexorável hora
terminal, será talvez curial (re)começar por te (re)dizer que
“Como tantas pessoas, senão todas, vi & vivi…” Etc.
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