14/12/2017

Cegueira, clarividência & circularidade do latinismo “et cœtera” - Rosário Breve n.º 534 in O RIBATEJO de 14 de Dezembro de 2017 - www.oribatejo.pt





Cegueira, clarividência & circularidade do latinismo “et cœtera”



Como tantas pessoas, senão todas, vi & vivi já manhãs cegas & noites clarividentes. Sobre umas como outras, os anos exerceram a sua autoridade tão obnubiladora quão propensa à mera, cerce & inescapável obliteração.
Nem a umas lamento, nem a outras louvo – limito-me a dar, de outras como de umas, essa espécie de livro-de-razão duplicemente chamado lucidez & resignação. Um mote subjaz, sólido, a estas voltas: a própria eternidade se volve efémera quando exposta ao esquecimento.
É possível que algumas circunstâncias loco-temporais da minha experiência logrem convencer o/a Leitor/a a não desistir já da corrente crónica. Assim:
pela tarde de uma sexta-feira natalícia de 1984, comprei, numa livraria de referência da Cidade dos meus vinte anos, dois exemplares da tradução portuguesa de Ficciones, do argentino Jorge Luis (sem acento) Borges (ed. Livros do Brasil, Lx., trad. de Carlos Nejas, revisão de Maria Ondina & capa de Lima de Freitas, © 1969). Recordo tê-lo lido na altura com o eufórico ardor de quem começa a reconhecer na (boa) Literatura uma forma-de-vida preferível à vidinha quotidiana.
Três décadas & três anos depois, reencontrei-me com o meu exemplar – o gémeo que dele comprara era de presente para um meu Irmão, mano que hoje, para nossa amargura, se encontra bastante doente. Na manhã de 29 de Novembro do (ainda) corrente 2017, atirei-me à releitura dessa obra magistral, cônscio embora de não ter já os vinte anos d’aquando a primeira leitura & temeroso de os meus correntes cinquenta-e-três, a-páginas-tantas de tantas páginas lidas desde tal remo(r)to 1984, me poderem ofuscar a memória dulcíssima do primeiro fascínio decorrente da descoberta de Borges. Já me tem acontecido, isso de reler em plena madurez livros que me (des)concertaram (n)a mocidadeficando-me o palato da mente por modos insalubre, insaciado: e decepcionado algumas vezes, até.
Tal não foi tal, desta vez. Ficciones (Ficções) continua a ser uma obra-prima de curtos relatos – daquela concisão lapidar tão ao modo & do gosto borgesianos. O Próprio J.L. Borges, no Prólogo à primeira parte da obra (datado de “Buenos Aires, 10 de Novembro de 1941”), é particularmente explícito quanto a este aspecto:
“Desvario laborioso e empobrecedor, o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma ideia cuja exposição oral cabe em poucos minutos.”
(Monsieur Proust n’est pas d’accord, don Jorge Luis!)
Como sempre faço em face de livros bons, enriqueço-me de vocábulos & de locuções cuja partilha pública acresce sobremaneira ao meu prazer privado. Tenha uma pérola dessas para Vós. A ostra de que provém é a pág.ª 123 da sobredita tradução portuguesa:
“Pensou que, à hora da morte, ainda não teria concluído o encargo de classificar todas as recordações de infância.”
Ora, por não ser chegada (não ’inda) nem a minha nem a tua, ó Leitor/a, inexorável hora terminal, será talvez curial (re)começar por te (re)dizer que
“Como tantas pessoas, senão todas, vi & vivi…” Etc.


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