Fala o Senhor
Professor Abelha
Sou
um fulano de rotinas. Sou-o de facto. Talvez o seja pela dupla ilusão da
segurança e da sobrevivência. A perna das calças em primeiro é sempre a
esquerda. Levo sempre o mesmo número de cigarros na cigarreira. Frequento dois
Cafés: um de avenida à sombra de tílias; outro de urbanização popular, a cuja
praceta preside um choupo todo bonito. A bica matinal é no das tílias; o resto
das beberagens é no do choupo. No bornal, os cadernos a manuscrever vão na
horizontal; os livros a consultar, na vertical. Os lápis só convivem com os da
sua raça no lado esquerdo do estojo triplo. A caneta, os marcadores e as
esferográficas, no direito. Ao centro, borracha, afiadeira, tesoura, cola. É só
assim que posso ser feliz. E seguro. E sobrevivente.
No
Café das tílias, repito com os donos (Luís & Rita) sempre a mesma graçola
cifrada: que o copo de água é a sessenta cêntimos, enquanto a bica propriamente
dita é oferta da casa; no Café do choupo, peço coisas tipo “uma-ucal-fresquinha-com-meia-torrada-com-manteiga-só-dum-lado”.
Respondem-me que sim-senhor-Abelha. E servem-me o bagaço, naturalmente. É uma
forma de felicidade como (quase) qualquer outra. Neste mesmo estabelecimento, o
Martim (filho do casal que gere a casa, Leonel & Nélia), chama-me de vez em
quando para o ajudar nalgum pormenor dos trabalhos-de-casa: ler, escrever e
contar, sabem? O menino nem sabe a alegria que me dá: chama-me “Senhor
Professor” e depois aperta-me a mão como os homens de bem fazem uns aos outros.
Ontem ofereci-lhe livros próprios para a idade dele. Ficou contente, mas voltou
logo que pôde à caderneta de cromos da bola que anda a preencher.
O
problema é quando entardenoitece. Sinto-me invariavelmente perdido num
descampado feito de prédios alheios eriçados de casas a que nunca chamarei
minhas. Remedeio o embaraço pondo-me a cirand’ambular a pé pela noite como os
doidinhos & os guardas-nocturnos de antigamente. Como a Churrasqueira da
minha terra só fecha às 23h00m, para lá me dirijo. Chego-me a ela, adiro a
pança ao balcão e peço qualquer coisa tipo “uma-ucal-fresquinha-com-meia-torrada-com-manteiga-só-dum-lado”.
Respondem-me sempre: “Está bem, abelha.
Compreendi-te.” E servem-me o bagaço, naturalmente. Estou finalmente em
casa. Por assim escrebeber, perdão, escreviver, perdão, por assim dizer.
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