Quatro
não-histórias para crestomatia alguma
1. Futebol
As
formigas verdes querem comer, ou pelo menos matar, as brancas, que vêm
contentes da casa das encarnadas, onde mataram e comeram na semana passada.
José
Alves trabalha na Mutual e é fiel ao seu balão de anis, que toma ao balcão do
senhor Assis. José Alves, branco, encarnadeja
acintes ao senhor Assis, que, encarnado, reverdece de raiva.
Nisto,
entra Filinto Elísio, um poeta de outro século. Não percebendo a discussão, sai
de cena e vai tomar capilé a outro sítio, que alguém pintou de azul sem ser
para provocar ninguém.
2. Acento Grave
Uma pessoa aclimata-se de pequenina a objectos preciosos que depois lhe tomam a vida.
Nalguns milhões de casos, a solidão colecciona selos: é a selidão.
Outros coleccionam pègadas, mantendo, por pura ortoteimosiagráfica, o acento grave.
Mulheres seleccionam amantes finos como caules de champanhe.
Rapazinhos domesticam rãs.
Menininhas adoram avôs.
No tudo, a vida e a morte coladas a cuspo pelo Tempo.
Depois, as segundas e as quintas dispersam-se como fins de feiras: horas ciganas, minut’oldos, segun’bancas, existir a saldo e a soldo, caixas aeróbicas com galinhas tísicas rodeadas de pintos de bairro social.
Eu fui escolhido por alguns Mundos de Aventuras (Matt Marriott, Wes Slade, Rip Kirby, Cisco Kid, Garth, Matt Dillon) com capas de Carlos Alberto, o mesmo de Camões e de Romeu e Julieta em cromos.
Uma pessoa é para o que nasce, é para o que morre.
3. Pensar em Si
O
pensamento tem ruas onde entardece.
Também
nessas ruas deflagra o pequeno comércio: frutas de furta-cores, flores de tela,
sapatos de corda, relógios também de corda, café de cheiro, banco de frio
numerário, açougue em sangue, farmácia asséptica, electrodomésticos de ocasião
electrodoméstica, lotarias lá fora por uma vida melhor, próteses básicas.
O
pensamento é uma (c)idade feita de outras (c)idades, trechos de aldeias e
bosques, planos directores sem direcção
de pormenor e, ainda ou até, placas de desorientação que dizem Coimbra, Leiria,
Barrocal; Porto, Lisboa, Espanha; Albergaria, Londres, Guia; Viseu, Baleal,
Carriço; Versalhes, Lameira, Lagares; Santiago, Santarém, Charneca.
Por
tais ruas passam como segundos incertos certas pessoas pensadas a vagaroso
contra-relógio: benignos fantasmas à hora do chá, de magras mãos depostas ao
lado do prato de biscoitos sobre mesa-de-camilha. Nas paredes das
ruas-de-pensar-nisso, há cartazes que antigueceram sem dor: touradas de outros
verões, bailes de falidos outonos, recenseamentos eleitorais que coincidem com
a época venatória, Julio Iglesias no
Casino Atlântico, Marco Paulo no Viuveiro, vota Partido Nacional, uma Promoção
a Pensar em Si.
4. A Dor, o Alívio
Não
quero contar a dor, mas a memória da dor.
Fazer de conta que ela não me interessa nem existe senão na forma contada, dia a dia contada. Conto e conta: palavra e número: meus recursos.
Dias contados sem apelo e com agravo: histórias, imagens, lances, datas, pânicos, serenidades.
No fundo, o mar de terra vegetal, seus peixes calcários, seus tufos de espargos, trevo, funcho, um monte geodésico, o horizonte vertical do meu Irmão.
É isto que estou a fazer, enquanto a vida, de lado, me assiste, meteorológica, escrita, sem outra memória possível que a da invenção da dor deveras.
Fazer de conta que ela não me interessa nem existe senão na forma contada, dia a dia contada. Conto e conta: palavra e número: meus recursos.
Dias contados sem apelo e com agravo: histórias, imagens, lances, datas, pânicos, serenidades.
No fundo, o mar de terra vegetal, seus peixes calcários, seus tufos de espargos, trevo, funcho, um monte geodésico, o horizonte vertical do meu Irmão.
É isto que estou a fazer, enquanto a vida, de lado, me assiste, meteorológica, escrita, sem outra memória possível que a da invenção da dor deveras.
Recordo:
o alívio de, comparada a vida com o céu nocturno de Verão, a dor não ter
sentido. No sentido de não ter aonde ir. A dor, não ter aonde ir a dor: o
alívio.
Era outro Verão. Tinha anoitecido. Cheirava a feno e a animais cansados no limite da doçura. O ar podia arredar-se à mão como a uma cortina.
Tudo tinha o ar de ter vivido o suficiente. As coisas mundiais muito bem dispostas no tabuleiro largo: o céu estilhaçado de cardumes de cristal, o monte de veludo negro parado como um touro, a terra estremecida de silveiras e ratos, os olhos do menino expostos à mais pobre e mais terrena imitação das estrelas: os pirilampos.
Eu não podia saber mais do que tudo. E tudo era a sombra ambulante de meu Pai: dupla sombra. Então, nessa outr’hora hoje falseada por minhas artes e manhas de aliviado, a felicidade era a moeda que luzia na arca.
Hoje, não tenho em que gastar esse dinheiro sem câmbio nem remissão.
Era outro Verão. Tinha anoitecido. Cheirava a feno e a animais cansados no limite da doçura. O ar podia arredar-se à mão como a uma cortina.
Tudo tinha o ar de ter vivido o suficiente. As coisas mundiais muito bem dispostas no tabuleiro largo: o céu estilhaçado de cardumes de cristal, o monte de veludo negro parado como um touro, a terra estremecida de silveiras e ratos, os olhos do menino expostos à mais pobre e mais terrena imitação das estrelas: os pirilampos.
Eu não podia saber mais do que tudo. E tudo era a sombra ambulante de meu Pai: dupla sombra. Então, nessa outr’hora hoje falseada por minhas artes e manhas de aliviado, a felicidade era a moeda que luzia na arca.
Hoje, não tenho em que gastar esse dinheiro sem câmbio nem remissão.
Não
importa.
Olha
o céu.
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