FOTOGRAVURA
INSTANTE
Leiria,
quinta-feira, 13 de Março de 2014
Manhã.
Uma bambina chilreia na praça.
Entretida com o próprio infinito.
Passarito sideral.
Haja luz.
O Inverno foi de rigor longo.
Uma boa parte da colin’além é ainda verde.
Em campânula, um bom azul-redoma.
Cristalaria da nitidez.
É um referendo ganho.
Isto não morrer nem renascer.
Isto ser isto.
Isto ser isto assim.
Labuta dos elementos concordes.
Do ar, as povoações retalhando a terra.
Ontem, o olho-lua superintendendo.
A tundra gelando até o desejo-taiga mesmo.
Certame dos avindos.
Termos tido manhãs assim sem remédio.
Braço esquerdo, da moç’além, mãe da
bambina.
& o bom verd’além em colina.
TOTTENHAM,
0 – BENFICA, 1 AOS 29 MINUTOS
–
prosa dos restantes 61’
Leiria,
quinta-feira, 13 de Março de 2014 (Noite)
A cidade arrefece a horas certas.
O polvo do movimento anestesia-se a si
mesmo.
Não é desagradável sentir o deserto no
corpo.
Coladas a cuspo de luz, janelas no cartão
dos prédios escur’anoitecidos.
O arvoredo frúi a aragem que arrepia
(f)rio.
A oriente de nada, a ocidente de nenhures.
Pasmo das rotundas: como olhos vazados.
Veludo refrigerado, solidão
consuetudinária.
Isto do mundo é tabuleiro tudo.
Numa casa-de-pasto de largas altas
vidraças, três, não, quatro indivíduos comendo sopa, cada um a sua mesa: peixes
humanos em aquário, cada por si, gerindo cada um o orçamento próprio, sem
mulher cada um dos quatro, única refeição quente do dia, vão levando o que
trazem à vida, deixam-se anoitecer, deixam-se a noite ser.
Numa colina, o Castelo. Ermo.
Noutra colina, o Cemitério. Ermo também,
mas de outra maneira.
Nos arrebóis, lumes domésticos, motorizadas
encostadas à parede do telheiro, arames para a roupa crucificando camisas e
fatos-macacos, no curral o porco repleto sonhando açougues, dia de reunião da
Associação, resolver aquilo com o padre e com o patrão da pedreira para a Festa
de Agosto.
Talvez.
À beira-rio, as solas percutindo cascalho,
como se esmigalhando diamantes, prensando quartzos, incalculáveis tesouros do
nascimento do planeta.
Sono das coisas, palidez dos vidros,
rasto-rumor (luz-motor) de camiões na via-sacra-rápida muit’além.
Vontade de seguir num deles para qualquer
lado.
À porta da pensão, boceja o padeiro, veio
tomar café, regressa ao forno, artista nocturno.
Tabuleiro tudo, sim, é isso.
Paredes bem pintadas, a deste reduto.
Ele ainda há operariado com valor.
Gente insigne – mas antes o Castelo, mas
depois o Cemitério.
Tem de se viver em obra.
Obra corrente como as águas da pensão, por
cujo Lumiar há pouco o padeiro.
Falta pouco para Abril, ou Novembro, ou
coisa assim.
De manhã, na papelaria, o homem de colete
verde; o balde com rolos de papel-de-parede para quarto de crianças; o aprumo
afiado da lapisaria; os cadernos sonhando a tinta do futuro.
Pela finimanhã, revoando pelo chão as
folhas de uma revista estraçalhada.
Esquerda cardial, dextra cardial, zénite
sideral, nadir do nada-nenhures.
O tempo é este, o vapor, a espuma, a
escuma, é este o trabalho, esta a atenção.
Depois não vale já a pena, qualquer pena.
No osso da página tornada possível.
Como os restaurantes da beira-mar no
Inverno agreste: aquários também, que do mar temem as águas em revolução.
Dizem que esta foi a mais pluvial invernia
dos, digamos, últimos 35 anos.
Em Londres, últimos 32 minutos, o Benfica
vai vencendo por 1-2.
Repousar um pouco junto ao candeeiro
(cúbica e amarela, a peça luminotécnica).
Ar de enfermeira cansada, a da senhora que
entra: encanecidamente entra, olhos aguad’azuleados, joelhos cambos de fadiga,
sapatas brancas de couro sintético, sem adornos auriculares, sem anéis, sem
verniz onicológico, blusa cinz’água fina, camiseta desmaiad’amarela, bolsa
larga mas não atulhada, mãos laborais.
Se a eternidade for parecida com isto,
há-de ser aborrecido morrer.
Quando a gente nasce, já os primeiros
créditos do filme passaram há muito, passa-se o resto da fita a trabalhar para The End.
Belas palavras, belas frias palavras, minha
querida.
Muitos de nós, sabe-se, chumbados à caliça
da memória.
Dos idos em nós, persistência ou do nome ou
do timbre palato-vocálico, ou da cercadura pisada dos olhos, ou do feitio dos
dedos (pés & mãos), ou do ricto comissúrio-labial. Ou quase tudo em um.
Como aqueles, um por um, comedores de sopa.
Três. Não, quatro. Só dois agora. Os outros pagaram & desandaram. Não ligam
a futebóis. O primeiro a ir-se embora: pode ser Pietra. O segundo a partir:
pode ser Arsénio. Os que ficam – Janeiro um; o outro, Crispim.
A sete minutos do término regulamentar, o
capitão encarnado, Luisão, averba o terceiro tento da equipa, segundo da conta
pessoal.
Se calhar, a reunião da Direcção vai ser só
depois do jogo, sempre os homens casados têm desculpa para só regressar pelas
meias-noites. Em solo britânico. Em areias de Portugal.
Isto é só uma quinta-feira. Não tarda, é
Junho ou Fevereiro.
Infinitude possível: olhar o pano preto que
azul foi: céu que dá noite, fabrica sem medida toda gás-vidro e deus nenhum,
olha o diabo.
Dão três minutos de desconto, nem a toda a
gente é concedida tanta largueza.
PLANO(S)
QUIETO(S)
Leiria,
sexta-feira, 14 de Março de 2014
I
Duas mulheres goelando ante
chás-gelados-palhinhas, os telemóveis ao lado como pistolas de prevenção.
De manhã recordei-me da tarde abrasiva, foi
no Verão de 2010, a Mãe no Lar assim para mim:
– E
tu, quem és tu? –
e eu, escrevivente, fazendo, ainda &
sempre, por ter o que responder-lhe.
II
A outra mesa, um rapaz esbranquicela de
cabeleira à rasta. Vai
enfardafarinhando-se de um mil-folhas crepitante. À frente do falso jamaicano,
um rapazola parecido com o Marc Anthony cantor. Mosca-pêlo no sublábio. Bebem
ambos coca-colas.
III
Além: a pomba de peito-madame-pompadour.
Pombadour, portanto. Mais além: o estádio feio, o estádio absurdo. Entre estádio
e pomba, o Lis, veia a tudo indiferente menos à ânsia pelo mar da Vieira.
IV
Quieto, aqui. Calmo. Um ligeiro toque de
ansiedade, sim, mas perfeitamente dominável. Bolo de chocolate em casa, café
feito de fresco. Pesadumbre palpebral. Não ceder à vocativa sesta. Alinhar
linhas novas na máquina-info, arrancá-las ao manuscrito.
E então, isso feito,
esperar por as que a noite queira dar.
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