I
DANTE
VIDA
NOVA
Leiria, 3/II/2013, domingo
(…)
conversar c’os mortos,
Quero
dizer, c’os livros (…)
(CORREIA
GARÇÃO, Sátiras, Sobre a Imitação dos Antigos, vv. 128-129)
Em
Vida Nova (trad. de Carlos Eduardo de
Soveral, ed. RBA, 1994), Dante Alighieri (n. Florença, talvez Junho, talvez 1265
/ m. Ravena, 1321) expõe-se-nos em prosa. O narrador comete sonetos também em forma pura, que divide e nos
explica.
Ama
uma Beatriz, que vem a morrer, talvez, ao mágico número 9 (de Junho de 1290).
O
narrador diz-se de quase (também) nove anos de idade quando a viu, primeira de
e entre todas, pela vez prima.
“Levava traje de nobilíssima, singela
e recatada cor vermelha, e ia cingida e adornada da forma que convinha à sua
pouca idade.”
O
Amor (maiúsculo, divo) não mais o largou.
Dias,
visões, divisões e versos sucedem-se como páginas vitais: mas o livro é o mesmo
sempre, como para sempre o Amor mesmo.
O
profeta Jeremias empresta-lhe(s) o latim abonatório (e venatório):
“O vos qui transitis per viam,
attendite et videte si est dolor sicut meus” – “Ó Vós todos que passais,
detende-vos e vêde se há dor igual à minha.”
Pergunta-se
o Amante se “os nomes resultam das coisas
nomeadas”.
Responder-lhe
não sei, pelo que prossigo até uma página maravilhosa – aquela em que, perguntando-lhe
um amigo que raio tinha ele, pois tão merencório (ou macambúzio) ao mundo
(a)parecia, esta resposta lhe foi dada:
“Pus os pés naquela parte da vida
além da qual se não pode ir com a intenção de regressar.”
Noutra
página, o narrador/sonetista assim incide:
“O rosto mostra a cor do coração.”
Vão-se
mais e mais depurando (ou purificando) os amáveis versos amantes, a ponto de a
prosa mesma os sublimar. Por exemplo assim:
“(…) o Amor não existe por si como
substância, antes como um acidente na substância.”
Morta
a Amada, redivive o Amor – mas não sem que a visão de certa dama que o via já
violáceo (ou “purpúreo”) de tristeza
o atraísse. Grave desconcerto, o dele: sabia-se chorando Beatriz mas também
olhado piedosamente por Outra, a quem ele desejar começa a. Ora, tal não pode
ser. Diz ele que é “vil”.
Daí
que olhos e coração e alma e o diabo.
Vale
bem a pena transcrever aqui na íntegra o soneto, em que o imo poético se vê
todo metido às onze-varas da camisa cujo pano é agarrem-me que eu vou-me a ela
e vivo-a.
Vem
o soneto na coerência de uma nota proémia, esta:
“Deste soneto estabeleço duas partes
em mim, conforme eram divididos os meus pensamentos. A uma delas chamo coração,
isto é, apetite; à outra, alma, isto é, razão; e digo como uma e outra falam
entre si. Que seja apropriado chamar coração ao apetite, e alma à razão, é
assaz manifesto para aqueles aos quais me agrada que o seja. Verdade é que no
soneto anterior tomei o partido do coração contra o dos olhos, o que parece
contrário ao que digo no presente; digo, por isso, que entendo aí coração pelo
desejo, pois que maior anelo era o meu de recordar a minha gentilíssima amada
do que ver esta outra dama, embora já sentisse algum desejo desta, apesar de
ligeiro.”
O
malandro.
Posto
isto, o soneto, que é de bonita claridade:
Pensamento
gentil que vos pertence
amiúde
vem a estar comigo,
e
fala-me de amor tão docemente,
que
faz nele consinta o coração.
A
alma diz então: “Quem será este
que
vem a consolar a nossa mente,
e
é de virtude tão potente,
que
nenhum outro deixa estar com ele?”
E
o coração responde: “Ouvi, alma cuidadosa:
é
este um novo espírito de amor,
que
traz até mim os seus desejos;
a
sua vida, e todo o seu valor,
flúi
desde os olhos da dama piedosa
que
se afligia com o martírio nosso.”
É
o que ele vem depois a referir como “versário
da razão”.
Digo
eu que “adversário” também, sem risco de falhar muito.
É
já pelo cair do pano do livro. O narrador (em “vulgar”, por oposição ao latim que o impediria de chegar em bom
apuro de significação a maior público) sente em si “uma forte imaginação, pela qual me parecia ver a gloriosa Beatriz com
aquelas vestes sanguíneas com que me apareceu na primeira vez; e aparecia-me
jovem como nessa altura.”
Traições
do muito querer, que nem o escrever volve menos fantasiosas – bem antes pelo
contrário.
Comove
ouvi-lê-lo assim:
“ Comecei então a pensar nela
(…)”.
Acabam-se-lhe-&-nos as páginas de Vida Nova.
Em suspense ficamos todos quando, no acume, ele nos
revela ter tido “uma maravilhosa visão” –
de que, sacana, nada mais revela. Diz-nos, tão-só, que estuda com dignidade
para conseguir “dizer de Beatriz o que
não foi [ainda] dito de mulher nenhuma.”
Garantido (pelo menos
a mim, que com ele passei bela e beatrizmente a hélia tarde de domingo) é que,
pela mão de Alighieri, nada jamais fica a ser como Dante(s).