LADO B
“O Verão foi-se embora. E quem sabe o que levou com ele...”, disse o
Victor com olhos de reticências, remexendo o açúcar coagulado no fundo da
chávena como se tentasse ler o futuro.
Eu não respondi. Não era uma pergunta.
Deixei-me estar. Então, vindo da tarde triste da rua triste, entrou o Rodrigo. Trazia
uma bolsa de fotógrafo com relógios dentro. Os relógios eram pesados e
prometiam uma pontualidade suíça. Notei que o tempo custa mais a passar para os
vendedores de relógios. Mandei vir três botijas de cerveja. A tarde continuava
lá fora, parda e fria como uma declaração de rendimentos. Entrou o Fernando.
“Quatro botijas” – disse o
Fernando.
Deixámo-nos estar. O Victor
contou uma história engraçada passada num baile. Rimo-nos. O Fernando contou
outra coisa, sem baile mas com piada. Rimo-nos.
O Rodrigo disse que aquela bolsa
lhe tinha sido dada pelo Zé Manel. Nós acreditámos. O Rodrigo tinha um colete
de malha novo. O colete caiu no chão.
Eu disse: “Rodrigo, o colete caiu no chão.”
O Rodrigo disse: “Então já não o quero.”
Vai daí, ofereceu-o ao Victor. O
Victor vestiu-o. Servia-lhe. Ficou com ele. Então, eu contei a história do lado
B.
Em 1994, trabalhei num bar
nocturno. Servi botijas e mastigantes a muita gente. Uma noite, apareceu o
rapaz Raul. O Raul tinha maus dentes e bons fígados. Mostrou-se uma jóia de
rapaz. Falava pouco, comia muito e bebia à percentagem do falar e do comer. Uma
noite, falou mais do que de costume. O Raul pigarreou e disse isto: “Pessoal, atenção: conhecem a do lado B?”. “Não,
nós não conhecemos a do lado B”, respondemos em coro grego. Então, ele
pôs-se a imitar o som de um gira-discos antigo. Mortos de riso, primeiro, e
ressuscitados de espanto, depois, ouvimos perfeitamente o “single” a receber a
agulha, percebemos, por magia, a ferrugem de chuva da agulha a chegar ao 45
rotações, escutámos, como se fosse possível tanta música, a canção (era o
Palito Ortega em “Yo Tengo Fe Que Tudo
Cambiará”), sobressaltámo-nos com a crepitação da espiral sem-fim da agulha
no fim do disco. Foi uma coisa maravilhosa. Um acontecimento único, uma
efeméride instantânea como um pudim de pó. Eu percebi que aquilo era uma
história boa para contar nos bares do futuro. Acabei de contar a história do
lado B. Riram-se. O Fernando disse: “Quatro
botijas, Daniel.” Havia, e ainda há, outro Daniel na história. Nada de
confusões. O Daniel trouxe as botijas, baixou o som da televisão e não mandou
bocas. Espreitei para dentro: a noite já estava lá fora, fora do Verão e à
nossa espera. Castanha como um fundo de chávena, mas sem açúcar. Pagámos,
despedimo-nos, cada um foi para seu lado.
O lado A.
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