O
BARQUEIRO
Da
outra margem da minha vida, alheio a esta hora tolerada, está o barqueiro que
me oferecerá flores e sombras.
Flores
crescidas nas sombras da água, não longe de árvores altas que apontam, como
lápis, os números sem leitura do céu. Tantas ruas agora corro, até que uma
delas se feche. Entrarei. Terei chegado ao cais. Música de madeira molhada os
meus pés tocarão. Verei no escuro os olhos de lobo do barqueiro. Verei o brilho
dos dentes: para me sorrirem e me comer. Sentirei a vida pontiaguda das
árvores-lápis apontando a desnecessidade de tanta leitura. Agora, não procuro.
Sei que as ruas preparam o barqueiro. Tantas ruas, um só barqueiro. Uma porta
para mim, por onde me escoarei como uma língua de luz, saciado e grato pela
glória de algumas mãos cujos dedos cercaram as minhas mãos, os meus dedos já
sem lápis pretos como árvores. Espero isso, caminhando embora, saindo daqui,
entrando aqui, penetrando os jornais do dia (os crimes de Negritarias e Mançã)
e as laranjeiras da noite, consciente de quem em bares frios adolescentes jogam
videocêntimos, atiram electrodardos, escutam hipnomúsica, bebem o leite verde
que lhes troca a consciência por uma hora melhor do que a vida toda. O meu
barqueiro cultiva as minhas rosas. Esta noite, merecerei ainda o meu caldo de
ervilhas com um naco de bovino afogado, uma lâmina de pão com cabo de mão
humana, a minha esquerda, também colhedora de azeitonas e páginas pares de
jornais da noite e de est(r)elas da tarde. Espero caminhando, amando a
amargura, essa fiel irmã dérmica, pulsadora, intrépida corredora venosa da
minha cartografia, lá onde a dopamina e outras terças-feiras se associam
recreativamente para dar ao meu barqueiro estas flores horizontais a que não
escapo nem quero. Posso ainda rondar o mar como um pastor de gaivotas,
completamente vivo, não despedaçado ainda pela porta sideral que leva ao
barqueiro cósmico, pobre funcionário crematório de rapazes tristes e putas
tristes e tão triste e sossegado no leite verde que reflecte o barco, o
barqueiro, as flores-lápis e as árvores-lazuli, um egipto de ruas portuguesas.
Até que a porta suceda.
Truz-truz.
Sem comentários:
Enviar um comentário