SAUDADES DE PORTUGAL, ESTANDO TODAVIA TODA A VIDA CÁ - I
(uma geografia estapafúrdia como todas as pessoais)
Foto (maravilhosa) colhida desta fonte:
I
Tondela, tarde de 18 de Agosto de 2008
Outrora em Lisboa eu descia muito ao metro a aprender como será isso de estarmos pessoas dentro da terra. Também o fazia para encontrar o meu Pai e o meu Irmão Jorge e o meu Cão Amarelo, que reencontrei muitas vezes e com quem partilhei amistosas viagens no silêncio, entre africanos vestidos de azul-curandeiro e chefes-de-família rezando o breviário do jornal desportivo e raparigas com o ar e o olhar de quem sonha com a fama-TV e professores de ginástica aeróbica com o aspecto todo de viverem à custa de mau sexo com cinquentonas administrativas estúpidas como jibóias e grossas como jibóias e jibóias como mulheres enroscadas em professores subterrâneos e anaeróbicos de metro. Hoje mesmo, esta mesma tarde, a minha mulher perguntou-me se, oportunidade havendo, eu entristeceria de mais em Lisboa. Eu não lhe disse logo que sim porque, de nós dois, é ela a única com futuro, a única de nós duas pessoas que tem saudades mas é do futuro, não é ela felizmente como eu sou, isto que por todo o lado continua atrelado ao Cão Amarelo e ao Irmão e ao Pai.
Peniche era outra coisa. Tinha pescadores, que eram formosos e escuros e tristes e violentos e alcoólicos como eu tudo isso, excepto formoso. Quantos passos errei por aquele istmo queimado pelo sal e pela saudade contemporânea de si mesma como a música de um fado é coeva de sua mesma letra? Peniche foi antes de Lisboa e depois da minha vida. Eu tinha 22 anos, depois 23, agora já fiz 44 e a vida é uma porra que só tem que se lhe diga quando a poesia deixa. Peniche é a cidade onde li Ruy Belo, que foi quem andou em Peniche a ler Alexandre Herculano, que não sei se alguma vez foi a Peniche documentar-se sobre esse monumento árabe que é o mar português.
Em Coimbra, saltei na Avenida Bissaya Barreto para arrancar dois malmequeres que havia altos numa vivenda de médico, em Coimbra todas as pessoas ou são médicas ou doentes, é por assim dizer a indústria local. Os dois malmequeres eram para uma namorada que tinha 18 anos como eu e era formosa e morena e trágica e piscatória como eu isso tudo, à excepção de formoso. Chamava-se ela, ai como é que se chamava.
Não sei em que ponto do nosso Portugal foi que estive mais de uma hora a chorar num banco de madeira, desses verdes de jardim onde os velhos se arrependem da vida e injuriam a Segurança Social. Foi algures, só pode. Não recordo as razões de tanta baba & ranho, talvez alguma mulher perdida como uma concha na praia, ele há tanta praia, tanta concha, tanta mulher. Eu não sei tudo, mas ainda sei chorar.
No Porto, certa ocasião, um amigo deu-me duas coisas, que foram um livro do Herberto Helder e um almoço de bifes de cebolada, desse tipo de livros e de almoços que fundem a chumbo o cu de uma pessoa à cadeira, no caso éramos dois cus. Depois, esse amigo foi à vida dele – e eu, por já então não ter vida aonde ir, vim-me embora do Porto e nunca mais lá voltei. À vida, quero eu dizer. Ao Porto sim, mas poucas vezes.
No Algarve é que era porreiro. Eu tinha 12 anos, nenhuma dívida e um princípio de educação que ainda hoje se reflecte na minha ortografia e no meu atravessar as ruas pelas passadeiras. A água marinha era caldosa e as raparigas francesas eram mesmo francesas, diziam jemápélélène êtuá comã tu tápéle?, que era quase tudo quanto eu podia perceber da língua helénica porque aprendi pelo Je Commence, que era o livro do Robert e da Nicole, que tinham um cão também francês chamado Patapouf, mas também só fui para francês porque a professora de inglês tinha engravidado e naquele tempo as professoras não eram tantas como são hoje, até já comi algumas e também vos digo que elas NÃO SÃO TÃO insossas assim. Mas isso foi depois do Algarve e de ter 12 anos.
Em Tondela, esta mesma tarde (agora mesmo), gostei muito de ouvir rir uma mulher. Era um riso bom, feito de simpatia pela vida e de boa situação financeira. Tinha o cabelo de raízes negras quase todo pintado de amarelo, o que lhe fazia da cabeça uma espécie de camisola do Beira-Mar, que é o clube de Aveiro e já ganhou uma Taça de Portugal, que é o nosso País, mas agora está na Segunda Divisão, como o nosso País. Gostei muito de a ouvir rir porque gosto muito de ouvir o riso das mulheres, que são seres com futuro, ao contrário de nós, os homens pescadores de Peniche, mesmo que não sejamos de Peniche e tenhamos perdido o mar logo ao nascer direitinhos à Segurança Social.
Em Setúbal, adormeci numa conferência de imprensa. Tinha dormido muito mal, depois fiz-me à estrada na noite parecida com uma caverna, um vórtice glaciar, no hotel onde era a coisa havia folhados de carne e café de marca italiana, na altura podia-se fumar, não era como agora que os higienistas e os gays e os judeus e os sportinguistas estão todos no poder a proibir tudo. Fiz bem em adormecer porque aquilo era tudo à base de economistas chamados BDO e de judeus e de gays e de sportinguistas muito higiénicos. Mesmo assim, consegui escrever um texto, que é uma coisa que ainda hoje consigo, saiu numa revista de economia qualquer de capas muito verdes e muito gays e muito BDO, shalom.
Em Viseu, fiz amor contra a minha mulher com um poema cheio de chuva como uma chávena de água do mar. Ela é de olhos azuis, que sorriem antes da boca. Porta consigo por todo o lado uma pele de louça flexível que entontece, naturalmente, os filhos-da-puta dos outros gajos que eu não sou. Quando ela se ri, é à beira-mar que recolho, mas não como aquela da cabeça do clube aveirense.
Em Ílhavo, nada a ver com isto. Em Ílhavo, conversei com um homem antigo de muito bom idioma. Como todos os viúvos, vivia num rés-do-chão. Ele gostou de conversar comigo, disse-me que eu ia morrer de velho porque sabia bem o meu português e as minhas maneiras e atravessar as ruas pelas passadeiras, só se enganou nisto, apesar da ortografia e de ter tido 12 anos no Algarve e noutros sítios do nosso País, que é Portugal. Tenho saudades desse homem, que se chamava Carlos e tinha saudades da mulher, que se chamava Maria do Amparo e o desamparara morrendo apesar do amor dele por ela, que ainda eram vivos, ele e o amor por ela.
Em Pombal, embebedei-me furiosamente contra o facto inexplicável de nunca o Nobel da Literatura ter sido atribuído nem a Camões nem a Cesário Verde. Pombal é uma terra muito cómica onde as pessoas choram, sobretudo em bancos de jardim. Os cães tossem peixes, as pombas parecem gaivotas bastardas, o sol é branco como um melão caído ao chão, os olhos das pessoas parecem pintados à mão – mas é lá que tenho amigos que não morrem, mesmo os que já morreram.
Em Santiago do Cacém, fiz a mijada mais maravilhosa da minha vida. Mas isso fica para outra ocasião. Agora, au revoir, como diriam o Robert e a Nicole e até o Patapouf.
Tondela, tarde de 18 de Agosto de 2008
Outrora em Lisboa eu descia muito ao metro a aprender como será isso de estarmos pessoas dentro da terra. Também o fazia para encontrar o meu Pai e o meu Irmão Jorge e o meu Cão Amarelo, que reencontrei muitas vezes e com quem partilhei amistosas viagens no silêncio, entre africanos vestidos de azul-curandeiro e chefes-de-família rezando o breviário do jornal desportivo e raparigas com o ar e o olhar de quem sonha com a fama-TV e professores de ginástica aeróbica com o aspecto todo de viverem à custa de mau sexo com cinquentonas administrativas estúpidas como jibóias e grossas como jibóias e jibóias como mulheres enroscadas em professores subterrâneos e anaeróbicos de metro. Hoje mesmo, esta mesma tarde, a minha mulher perguntou-me se, oportunidade havendo, eu entristeceria de mais em Lisboa. Eu não lhe disse logo que sim porque, de nós dois, é ela a única com futuro, a única de nós duas pessoas que tem saudades mas é do futuro, não é ela felizmente como eu sou, isto que por todo o lado continua atrelado ao Cão Amarelo e ao Irmão e ao Pai.
Peniche era outra coisa. Tinha pescadores, que eram formosos e escuros e tristes e violentos e alcoólicos como eu tudo isso, excepto formoso. Quantos passos errei por aquele istmo queimado pelo sal e pela saudade contemporânea de si mesma como a música de um fado é coeva de sua mesma letra? Peniche foi antes de Lisboa e depois da minha vida. Eu tinha 22 anos, depois 23, agora já fiz 44 e a vida é uma porra que só tem que se lhe diga quando a poesia deixa. Peniche é a cidade onde li Ruy Belo, que foi quem andou em Peniche a ler Alexandre Herculano, que não sei se alguma vez foi a Peniche documentar-se sobre esse monumento árabe que é o mar português.
Em Coimbra, saltei na Avenida Bissaya Barreto para arrancar dois malmequeres que havia altos numa vivenda de médico, em Coimbra todas as pessoas ou são médicas ou doentes, é por assim dizer a indústria local. Os dois malmequeres eram para uma namorada que tinha 18 anos como eu e era formosa e morena e trágica e piscatória como eu isso tudo, à excepção de formoso. Chamava-se ela, ai como é que se chamava.
Não sei em que ponto do nosso Portugal foi que estive mais de uma hora a chorar num banco de madeira, desses verdes de jardim onde os velhos se arrependem da vida e injuriam a Segurança Social. Foi algures, só pode. Não recordo as razões de tanta baba & ranho, talvez alguma mulher perdida como uma concha na praia, ele há tanta praia, tanta concha, tanta mulher. Eu não sei tudo, mas ainda sei chorar.
No Porto, certa ocasião, um amigo deu-me duas coisas, que foram um livro do Herberto Helder e um almoço de bifes de cebolada, desse tipo de livros e de almoços que fundem a chumbo o cu de uma pessoa à cadeira, no caso éramos dois cus. Depois, esse amigo foi à vida dele – e eu, por já então não ter vida aonde ir, vim-me embora do Porto e nunca mais lá voltei. À vida, quero eu dizer. Ao Porto sim, mas poucas vezes.
No Algarve é que era porreiro. Eu tinha 12 anos, nenhuma dívida e um princípio de educação que ainda hoje se reflecte na minha ortografia e no meu atravessar as ruas pelas passadeiras. A água marinha era caldosa e as raparigas francesas eram mesmo francesas, diziam jemápélélène êtuá comã tu tápéle?, que era quase tudo quanto eu podia perceber da língua helénica porque aprendi pelo Je Commence, que era o livro do Robert e da Nicole, que tinham um cão também francês chamado Patapouf, mas também só fui para francês porque a professora de inglês tinha engravidado e naquele tempo as professoras não eram tantas como são hoje, até já comi algumas e também vos digo que elas NÃO SÃO TÃO insossas assim. Mas isso foi depois do Algarve e de ter 12 anos.
Em Tondela, esta mesma tarde (agora mesmo), gostei muito de ouvir rir uma mulher. Era um riso bom, feito de simpatia pela vida e de boa situação financeira. Tinha o cabelo de raízes negras quase todo pintado de amarelo, o que lhe fazia da cabeça uma espécie de camisola do Beira-Mar, que é o clube de Aveiro e já ganhou uma Taça de Portugal, que é o nosso País, mas agora está na Segunda Divisão, como o nosso País. Gostei muito de a ouvir rir porque gosto muito de ouvir o riso das mulheres, que são seres com futuro, ao contrário de nós, os homens pescadores de Peniche, mesmo que não sejamos de Peniche e tenhamos perdido o mar logo ao nascer direitinhos à Segurança Social.
Em Setúbal, adormeci numa conferência de imprensa. Tinha dormido muito mal, depois fiz-me à estrada na noite parecida com uma caverna, um vórtice glaciar, no hotel onde era a coisa havia folhados de carne e café de marca italiana, na altura podia-se fumar, não era como agora que os higienistas e os gays e os judeus e os sportinguistas estão todos no poder a proibir tudo. Fiz bem em adormecer porque aquilo era tudo à base de economistas chamados BDO e de judeus e de gays e de sportinguistas muito higiénicos. Mesmo assim, consegui escrever um texto, que é uma coisa que ainda hoje consigo, saiu numa revista de economia qualquer de capas muito verdes e muito gays e muito BDO, shalom.
Em Viseu, fiz amor contra a minha mulher com um poema cheio de chuva como uma chávena de água do mar. Ela é de olhos azuis, que sorriem antes da boca. Porta consigo por todo o lado uma pele de louça flexível que entontece, naturalmente, os filhos-da-puta dos outros gajos que eu não sou. Quando ela se ri, é à beira-mar que recolho, mas não como aquela da cabeça do clube aveirense.
Em Ílhavo, nada a ver com isto. Em Ílhavo, conversei com um homem antigo de muito bom idioma. Como todos os viúvos, vivia num rés-do-chão. Ele gostou de conversar comigo, disse-me que eu ia morrer de velho porque sabia bem o meu português e as minhas maneiras e atravessar as ruas pelas passadeiras, só se enganou nisto, apesar da ortografia e de ter tido 12 anos no Algarve e noutros sítios do nosso País, que é Portugal. Tenho saudades desse homem, que se chamava Carlos e tinha saudades da mulher, que se chamava Maria do Amparo e o desamparara morrendo apesar do amor dele por ela, que ainda eram vivos, ele e o amor por ela.
Em Pombal, embebedei-me furiosamente contra o facto inexplicável de nunca o Nobel da Literatura ter sido atribuído nem a Camões nem a Cesário Verde. Pombal é uma terra muito cómica onde as pessoas choram, sobretudo em bancos de jardim. Os cães tossem peixes, as pombas parecem gaivotas bastardas, o sol é branco como um melão caído ao chão, os olhos das pessoas parecem pintados à mão – mas é lá que tenho amigos que não morrem, mesmo os que já morreram.
Em Santiago do Cacém, fiz a mijada mais maravilhosa da minha vida. Mas isso fica para outra ocasião. Agora, au revoir, como diriam o Robert e a Nicole e até o Patapouf.
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