Para a minha muito querida Amiga
Lucínia Baptista Azambuja,
que está doente.
ILucínia Baptista Azambuja,
que está doente.
A tua sombra habita já a terra,
deitada amante que a teu corpo aguarda.
Entre o teu corpo e a sombra a que ele pertence,
há um amor que se alimenta de invencível luz.
O alto sol branco a vós três desenha escuramente,
corpo, sombra e isso a que chamas eu.
Nenhum corpo deixa, à luz, de batalhar nas sombras,
suas luas tarjadas de preto e de cometas.
Quantas vezes isto a que chamo eu foi, fui,
treva travada em equinocial drama
de luz a mais outonal a pleno junho
– e sol e sacrifício e solstício?
Tantas vezes, vozes tontas. Drama colectivo e humaníssimo,
drama do pintor ante suas cinzas de color idas.
E sempre vindas, a sombra pelo chão derramada,
tanta pretidão oculta em branco, o sol alto.
A tua sombra como se uma mulher te falasse
ao ouvido tecnicamente: trabalho de músicas
urdindo os anticristos do silêncio, lá onde a
gonorreia e a fome e as agências de viagens.
E as de virgens, ao sol, num botequim
esconso como o coração, o sol todo de repente na rua.
O sol de repente todo na lua, subindo a montanha
a escalão de chuva, o gosto maior da morte na boca.
E a língua toda louca, entre sombra e corpo,
o homem pequenino comprando flores e rebuçados,
a enorme quarta-feira da eternidade, a cosmogonia genital
das mulheres, o transístor pasodoblando janelas cristaleiras.
E os bancos de pedra sob a tabuleta de telefone e selos,
na aldeia íntima do coração, num país sombrio
e solar como um susto de criança ante o poder
do pai, a vilegiatura da mãe e os limoeiros
que tossem ouro citrino contra o azul invencível
de que se alimentam corpo, sombra e eus e deus.
Cosmos e agonia – e rebuçados e flores – tudo
baba sua aranha negra, sua branca sombra de pomba e escombro.
Uma tarja verde oficializa o morto vegetal,
esse que transportamos em cafés e cigarros.
Convocas de pés no chão como mãos caídas
a humidade solar e terratenente do futuro, agora.
Os aviões choviam no escuro patrioticamente
a fundamental incompreensão da batalha. Era o idioma
nascendo seus cogumelos maus em vastas praias
como os sonhos e as mortes das mães.
E as coisas de que se outonam os versos
– e as pequeninas alegrias do sexo e dos rios,
quando as andorinhas fecham os olhos
e voam à maluca, riscos pretibrancos no céu azulealuz.
Esse tempo de árvores fruteiras que perdemos
na infância, lá onde a última cal e a primeira sombra.
A natureza alimentícia das casas pelo chão,
onde os cães botaram mãos de pintura e mijos.
A natureza mortal da beleza, isso a que a cada eu
ensina o tu demasiado vasto do que se perde
mais nascendo do que morrendo. E a ternura de prata
feita talher que alguma mãe guarda contra a perda
e contra os retratos, na linha de sombra que
deita olheiras ao sol. Assim de repente, assim
claramente, na noite que os outros tornam nossa
naquilo a que chamamos invencivelmente eu.
(E tudo depois
como nunca antes,
a sombra dos comedores
aos pés dos restaurantes.)
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