17/06/2008

Um dia Teremos Tido


Texto: Viseu, manhã e tarde de 17 de Abril de 2008
Foto: Coimbra, 7 de Julho de 2007


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I
Viseu, manhã


Um dia teremos tido este dia
outra manhã se nos volverá noite
cada hoje é um volitivo rio involuntário.

A minha tarefa é reconhecer o mundo conhecido
redescobrir o mundo descoberto.

É cada dia um mundo
e o mundo é a mais importante descoberta
de cada dia desconhecido.

Isto te digo com o coração nas mãos
se não em ambas ao menos na direita
a que escreve para perder olhando o dia na cara.

Não importa que chova e pelas ruas passem
as pessoas abatidamente
como cães magramente
pensando na vida do dia-a-dia.

Dia a dia perdemos ganhamos vencemos dias.
Nem sempre nos derrota a noite
ela nos permite afinal a imitação da morte
como a manhã nos afinal admite nascimento novo
para o dia.

É belo respirar numa montanha que suba o dia
todos os dias para sempre
e quando dentro de nós dizemos
para sempre
é
nunca mais
o que dizer queríamos
mas não o sabíamos.

A morte precisa dos telefones para existir
sem eles ela não existiria
e só vida sentiríamos que havia:

a vida da cabeça dos castanheiros ao pente do vento
a vida corredora das raposas
a vida climatizada do dentro dos carros
a vida das nossas mulheres abrindo a nossa
a vida dos animais pelas ruas vivas
a vida daquela rapariga bebendo chá pensando na vida.

Um dia
não hoje
teremos tido este dia
e alguma íntima ínfima voz do futuro hoje
não é já hoje
como soía.

II
Viseu, tarde

No olhar que assina o rosto deste homem
revejo as películas dos olhos dos homens
da minha infância
os vários únicos homens
a que chamar Pai ou Jorge ou senhor Sacramento
ou senhor Nunes ou senhor Artur ou tio Arménio.
Homem multiplicado e indivisível da minha idade adulta
homem da minha estulta cidade
deixa-me que te diga
senhor
quão mais pobre sem vós eu me seria
homem eu também afinal e
conforme os dias
tratado até por senhor
em cafés e mercearias.

III

Tenho dentro de mim as vossas palavras
levo-vo-las por todo o lado
tenho um mapa da cidade
que olho de cima como se a sobrevoasse
as vossas palavras estão inscritas em mim
tu António Arcanjo Dias
isso é ser amigo
lembras-te?
tu Fernando Jorge Pereira Fernandes
vim aqui ver-te
sabes?
senhor Professor Elias Rodrigues Faro
o senhor disse
trago-te isto tudo
e trouxe
tu Rui de Moura Belo
escreveste
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra do poeta

e eu li e percebi e agora sei
por estas ruas vivas com nomes de mortos
agora sei quanto viver é o melhor remédio
contra a morte e contra a própria vida
devo ter envelhecido porque sei algumas coisas
sei por exemplo chamar com pão as pombas
sei escrever inutilmente versos que como veias palpitam
sei fazer utilmente telefonemas inesperados com as vossas palavras
sei uma data de datas como se usasse jóias
sei olhar os cães na cara e eles percebem
sei parar perante uma rosa quando chove
sei onde são as praias do Baleal e da Consolação
(frequentada esta última por Ruy Belo a partir de 1972)
sei ir sozinho aos correios devolver-vos estas palavras.

Este poema é como estar nos correios.

IV

Devo ser agora um gajo de Viseu
fui à porta do café fumar um cigarro e
perguntou-me um casal uma direcção
que eu sabia perfeitamente qual era
ao contrário da da minha vida
e que perfeitamente lhes indiquei
com a cortesia que era a de meu Pai
a rua e as que a ela transversam
o Pavia perto e as árvores
e que cafés servem o mais barato e melhor copinho
e que livros talvez folhear na livraria ao pé
e que pombas alimentar com que trinca de arroz
a 57 cêntimos o saco na mercearia mais perto
e é mesmo ali
mesmo aqui
não há que enganar.

V

Algum anjo apedrejou hoje os cântaros de Deus
chove que Ele a dá
estou há quase uma hora para sair daqui
e não devo
posso mas não devo
sair daqui.

Aproveito para amontoar versos
tenho um lápis amarelo novo
o de ontem gastei-o nos versos de ontem
gostaria de ter uma lareira um bule de chá
os volumes de L’Illustration a partir de 1845
um pessegueiro no pátio
uma atitude definitiva
uma caderneta de numerário
um vaso de vidro cheio de morangos idênticos
à boca de uma criança sumarenta.

Algum anjo
o sacana de algum anjo
me apedrejou.

VI

Nos sonhos alguns vivos existem mortos
nos sonhos alguns mortos revivem mexem-se.
Nos sonhos as luzes não estão todas ligadas
a penumbra é a pátria dos sonhos claramente.

VII

É engraçado como a chuva anoitece o olhar.
A catedral já de si tão nocturna anoitece até a manhã.
Vamos buscar os filhos à escola fazemos a ronda da padaria
do sapateiro da fotocopiadora do quiosque
e chove chove chove chove até ser noite
até ser amanhã.
A minha mulher e a minha gata
não simpatizam com a chuva
eu simpatizo
eu até contemporizo.
À Porta de Viriato
espero e atendo.
São seis e cinco da tarde chove
atendo e espero.
A vida chove lá fora.
Tenho tempo.
Estou aqui sentado a anoitecer.
Tenho tempo.
Sou como vós continental
como vós preparo ilhas pensadas enquanto chove.
Os quiosques recobriram de plástico os jornais
vão vender menos.
Passa na tv um filme de pistolas nortamericanas.
Dois velhos olham para aquela merda muito entretidos.
Eu olho a chuva no mundo que foi de Viriato.

A este café vêm muitas putas da zona.
É agradável estar aqui quando chove.
Parece-se muito com as quintas-feiras na biblioteca
municipal de Coimbra
a de antigamente junto aos socorros mútuos dos artistas
noutra vida que vivi
ou me viveu
antes de ti.
Acho graça à graciosa alma
ao preço dela tenho apreço.
Estou aqui sentado a lembrar-me das minhas pessoas.
Estou aqui sentado dentro da língua.
O acontecimento mundial é a chuva.
Aquele casal a quem indiquei no IV a rua tal
deve estar molhado.
Pareceram-me uma boa relação
pareciam-me felizes um com o outro.
Gostei de indicar-lhes a rua em língua portuguesa.

Já estava a chover na altura
foi por volta das quatro da tarde.
Claro que este céu inox nos faz como
viver dentro de uma caixa de sapatos
dessas antigas todas iguais
todas iguais umas dentro traziam sapatos novos
para os pés que já então envelheciam
os caminhos as veredas as ruas
as cidades de cartão.
Um bule de chá uma biblioteca de livros de carneira
as vossas palavras
tudo o que sempre quis
quero sempre
e sempre hei-de querer
quando chove
e quando não chove.

VIII

Vamos estar juntos durante o filme.
Depois vamos comer qualquer coisa na noite.
Já não chove sabia-me bem uma sopa quente.
Levo amigo um livro mas podemos conversar.
Lá fora os homens mais pobres olham pela montra
vêem-nos comer perante altares de papel.
Há frango há feijão-frade há bacalhau há dourada.
O patrão tem um pé imortalizado em gesso
até as frases lhe coxeiam na boca.
Comer uma azeitona é como saborear uma oliveira
reparaste?
Sim tenho tido os meus dias.
Agora saio menos deixo-me estar
já conheço muito mundo
sei as ruas na ponta da língua.

2 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

"Levo amigo um livro mas podemos conversar"

Os livros e os amigos, sempre!
Um grande abraço, Daniel.

Nuno Dempster disse...

"Devo ser agora um gajo de Viseu" ou devemos parecê-lo dentro das muralhas.

e mesmo aquele burgo entre montanhas /
onde era proibido ter ideias


Virei por cá ler mais.

Canzoada Assaltante