09/06/2008

PRECISO TANTO DE FALAR CONTIGO MAS HOJE JÁ NÃO

Viseu, tarde de 8 e manhã de 9 de Junho de 2008



Tenho já em vida pena de morrer um dia por estas árvores.
Seda vem delas em fresco ar ao pano da pele.
Tenho já ouvido o piano terminal no silêncio comum.
Uma mulher parada num quarto esperando comboios para o norte.
As coisas existem fortemente. O corpo tem delíquios.

Levo-me num dedo à névoa que envolve a garrafa:
o frio embacia a cerveja como o vapor do banho o espelho.
Somos todos no café peões de tabuleiro que ninguém joga.
Tenho muita pena das pessoas hirtas ao sol,
muita pena da sombra das árvores atirada ao chão.

Sou o que veio para te não perdoar tanto amor.
No ventre da mulher dele construiu meu Pai isto:
esta vida, esta vinda, esta vianda.
As sinapses todas luzindo como gambiarras de natal.
E a infância lá em baixo deitada no escuro como um cão.

Preciso tanto de falar contigo mas hoje já não.
Quem me dera ser capaz de levantar do chão os rios.
Os rios? Isso que anda deitado como os mortos.
Toda a existência mínima é uma grande guerra.
E no café usamos ideias como capacetes.

Fechados na manhã como caixas de bacalhau,
urdimos a vilegiatura de apodrecidas romãs.
O monossilábico sapo coaxa sua nota triste,
as mães predominam pela calada da manhã,
os homens envergam o jornal desportivo como outrora lanças.

Espera-me tu ainda um pouco, eu só tenho este poema
para acabar-me. Sou o que veio para te nascer –
e não penso concluir esta casa, esta refeição
de migalhas.
Sei o horário dos comboios para o norte,

nenhum chegará à certa hora de por estas árvores
me morrer. Somos os cordeiros de Deus-Lobo.
Valer não é balir: nem eu poderia ir
fazer filhos a mulheres que escarlatam de sangue
as unhas de verniz, também te lo digo.

Letra a letra persigo a luz, esse óculo de som
vidrando de miríades o estilhaçado pranto.
Fecha-me num quarto, deixa-me uma posta de bacalhau,
um vaso de água, uma carta por abrir,
uma fotografia da minha Irmã perto do nascimento.

Se eu me deitar, absolve-me de ter-me levantado
um dia sozinho, clínico ambulador entre nespereiras.
Eu fui já um menino feliz quando mesmo chovia
em bairros atarantados pela mais cigana contrafacção:
estar vivo e sabê-lo.

Agora adentro o nosso mais íntimo rumor, digo:
agora conheço de cor a feira impopular do coração.
Sou agora capaz de me meter no comboio,
de trocar pura sapiência com o rapaz do vagão-bar,
esperar que o corredor de árvores amanheça de cavalos.

E de tal sorte, que muita pena me detém,
da morte, a vida e o norte.

3 comentários:

Um Certo Olhar disse...

Li encantada o seu poema. O poder da palavra na poesia tem o encanto das clandestinas madrugadas que gosto de sorver com o olhar.

Foi um prazer conhecer a sua obra.

bjo

Anónimo disse...

já li e reli tantas vezes, daniel. é tão bom e bonito e puro :) muito obrigada por existires fortemente! um grande beijinho.

LM,paris disse...

Cher daniel, " uma refeiçao de migalhas", " ao pano da pele"...podia ficar aqui a recitar por escrito o teu poema.
é uma necessidade de repetir, apontar, mas està tudo tao ligado.vejo tudo, filmico.
lindo, arrebatador, os mortos deitados no chao como o rio.
adorei. vou reler.
beijos de Paris.
até jà.
LM

Canzoada Assaltante