Imagem: Rossio de Viseu, tarde de 21 de Maio de 2008
Palavras: Viseu, manhã e tarde de 22, mais manhã de 23 de Maio de 2008
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I
Não quero deixar que mais cosmético do que cósmico
seja o coração que emprego na vida.
Tenho expulsado da minha vida
pessoas maquilhadas e maquiavélicas e bélicas de maquias
que recuso pagar.
Vou agora finalmente mais pelo sossego das minimercearias
onde é possível trocar por morangos os simples bons-dias.
Vou agora finalmente retornar ao livor das oliveiras
encadeadas de azeite no caminho do sul da vida.
Amor, tu, como ninguém, ninguém mais,
sabes que as nossas bocas são as duas metades da rosa.
Adentro, só a cósmica outra rosa, a do coração.
Se fosse para ser cosmética, já a teria eu rendido à estética
dos poemas-croquetes, dos provincianos teatros subsidiados
a esmola de autarquias-feudo’stados e pseudosquerdasrebeldias.
Quero dizer tudo antes de, de novo, nascer na morte.
E pod’até ser que um decassílabo
como o do verso anterior, por sorte,
me faça contar moedas de cuspo.
Serei sempre o gajo mais valente dos bailes,
excepto em caso de porrada ou falta de ginja.
O meu coração, não: o meu coração não é
para entregar a putas, mesmo as que sejam homens.
O meu coração é filho do coração do meu Pai
e também
do da minha Mãe,
ela e ele tudo cósmicos
e cosméticos nada.
II
Toco a primeira pele da água com um único dedo,
forma-se uma gota de cristal na ponta,
que deixo cair ao pé único da árvore,
que a receberá de vivos veios través a terra.
São-nos ainda possíveis estes simples ministérios,
dar água a uma árvore, temos ainda dedos
para tocar a pele primacial do cristal.
Nem sempre é preciso, às vezes chove, mas
muito mais nos custaria naturais não cedermos
a ser, havendo, como ainda há, árvores,
água – e dedos ainda termos.
Em derredor, como pombas em torno de envelhecidos
poetas provincianos mais que provinciais mas jamais municipais,
espargimos o pão de cristal
da água que tanto nos existe, por exemplo nos olhos.
Assim procedo enquanto atendo a enxuta
passagem a pó, través a terra.
III
Quer enquanto puder um homem coincidir com o seu nome,
que aliás não escolheu,
a vida não faz escolhas, é de escolhas feitas antes aliás.
Regressam à África do Sul as chacinas tablóides,
aqui em Viseu não se passa nada, à parte
a histeria da selecção (a escolha) dita nacional,
as pombas e os pardais do Rossio de bagos de trinca de arroz
como estes versos não escolhidos, antes aliás colhidos
do intestino marulhar do idioma na cabeça
de um poeta para sempre provinciano
jamais municipal.
IV
Mais que escolhido, colhido sou por versos nos dias,
brancos intervalos frios das noites frias.
Aceito meu destino tal árvore que, à luz,
sombra fabrica e ar, só tenho de aceitar.
Torna-se-me antiga a mente, de muito antigamente
feita já em meia mão de dias, um punhado de noites.
Comprei um livro do Carlos Fuentes em Peniche, antigamente,
eu era tão novo quão uma pedra lavada pelo mar.
Cada hoje me torna mais outrora, facto transparente
que decorre da simples notícia de ser gente.
Aproveito devagar o meu Sá de Miranda e os meus dias,
a minha idade entardece na cidade como a árvore.
Sou por vezes atacado de alegrias que amaino
com a terceira mão do pensamento, esse país interior
todo tracejado de província e exílio como a e o dos amados
seres que comigo acordam quando durmo e os sonho.
Os pés nus de uma mulher como suspensas albas,
uma indeterminável tarde terminada, ante o mar:
lírios viáticos, provisão do meu caminho na vida
aonde entro como se nunca morresse por dentro.
Oriento-me menos pelos nomes das ruas
que pelo anonimato dos meus mesmos pés
calçados do perpétuo outono das folhas
dos livros, sej’embora junho quase.
Acredito nos animais que mais pelas ruas
nos indicam o caminho do que a pobre gente
fardada de inconsequente humanidade.
E dentro me perco mais que pela cidade.
Dourado couro é cada corpo passado
além da leonina navegação diária.
E à alheia morte franqueamos a própria vida,
que mais nos morre na outra desaparecida.
V
Nada custa apreender o fim
custa sim surpreender a vida
digo
as várias vidas dentro
todas babando a seda de um fim único
somos todos ou nada somos
somos
digo
bichos-da-sede
da seca seda
de corações tudo menos enxutos.
Falo
não por mim
mas além do que sou do que tive
o mar por exemplo
de cuja propriedade
me passei escritura
e ainda
em vão
passo.
Nada tenho
nada me custa
tanto
como tudo.
VI
Cada 23 de Maio, volto a ser alto e de pé.
Não vou ter muitos dias assim.
Acaba-se porém menos para mim
do que para outros o ser que se é.
Morro às dez e meia da manhã.
Volve-se-nos máximo ontem o mínimo amanhã:
mas menos a mim do que aos que seguem dando-me voz,
vos por mim fazendo falar a sós.
Demoro.
Não demoro
mas habito
e vivo.
VII
Não quero deixar que mais cosmético do que cósmico
seja o coração que emprego na vida.
Tenho expulsado da minha vida
pessoas maquilhadas e maquiavélicas e bélicas de maquias
que recuso pagar.
Vou agora finalmente mais pelo sossego das minimercearias
onde é possível trocar por morangos os simples bons-dias.
Vou agora finalmente retornar ao livor das oliveiras
encadeadas de azeite no caminho do sul da vida.
Amor, tu, como ninguém, ninguém mais,
sabes que as nossas bocas são as duas metades da rosa.
Adentro, só a cósmica outra rosa, a do coração.
Se fosse para ser cosmética, já a teria eu rendido à estética
dos poemas-croquetes, dos provincianos teatros subsidiados
a esmola de autarquias-feudo’stados e pseudosquerdasrebeldias.
Quero dizer tudo antes de, de novo, nascer na morte.
E pod’até ser que um decassílabo
como o do verso anterior, por sorte,
me faça contar moedas de cuspo.
Serei sempre o gajo mais valente dos bailes,
excepto em caso de porrada ou falta de ginja.
O meu coração, não: o meu coração não é
para entregar a putas, mesmo as que sejam homens.
O meu coração é filho do coração do meu Pai
e também
do da minha Mãe,
ela e ele tudo cósmicos
e cosméticos nada.
II
Toco a primeira pele da água com um único dedo,
forma-se uma gota de cristal na ponta,
que deixo cair ao pé único da árvore,
que a receberá de vivos veios través a terra.
São-nos ainda possíveis estes simples ministérios,
dar água a uma árvore, temos ainda dedos
para tocar a pele primacial do cristal.
Nem sempre é preciso, às vezes chove, mas
muito mais nos custaria naturais não cedermos
a ser, havendo, como ainda há, árvores,
água – e dedos ainda termos.
Em derredor, como pombas em torno de envelhecidos
poetas provincianos mais que provinciais mas jamais municipais,
espargimos o pão de cristal
da água que tanto nos existe, por exemplo nos olhos.
Assim procedo enquanto atendo a enxuta
passagem a pó, través a terra.
III
Quer enquanto puder um homem coincidir com o seu nome,
que aliás não escolheu,
a vida não faz escolhas, é de escolhas feitas antes aliás.
Regressam à África do Sul as chacinas tablóides,
aqui em Viseu não se passa nada, à parte
a histeria da selecção (a escolha) dita nacional,
as pombas e os pardais do Rossio de bagos de trinca de arroz
como estes versos não escolhidos, antes aliás colhidos
do intestino marulhar do idioma na cabeça
de um poeta para sempre provinciano
jamais municipal.
IV
Mais que escolhido, colhido sou por versos nos dias,
brancos intervalos frios das noites frias.
Aceito meu destino tal árvore que, à luz,
sombra fabrica e ar, só tenho de aceitar.
Torna-se-me antiga a mente, de muito antigamente
feita já em meia mão de dias, um punhado de noites.
Comprei um livro do Carlos Fuentes em Peniche, antigamente,
eu era tão novo quão uma pedra lavada pelo mar.
Cada hoje me torna mais outrora, facto transparente
que decorre da simples notícia de ser gente.
Aproveito devagar o meu Sá de Miranda e os meus dias,
a minha idade entardece na cidade como a árvore.
Sou por vezes atacado de alegrias que amaino
com a terceira mão do pensamento, esse país interior
todo tracejado de província e exílio como a e o dos amados
seres que comigo acordam quando durmo e os sonho.
Os pés nus de uma mulher como suspensas albas,
uma indeterminável tarde terminada, ante o mar:
lírios viáticos, provisão do meu caminho na vida
aonde entro como se nunca morresse por dentro.
Oriento-me menos pelos nomes das ruas
que pelo anonimato dos meus mesmos pés
calçados do perpétuo outono das folhas
dos livros, sej’embora junho quase.
Acredito nos animais que mais pelas ruas
nos indicam o caminho do que a pobre gente
fardada de inconsequente humanidade.
E dentro me perco mais que pela cidade.
Dourado couro é cada corpo passado
além da leonina navegação diária.
E à alheia morte franqueamos a própria vida,
que mais nos morre na outra desaparecida.
V
Nada custa apreender o fim
custa sim surpreender a vida
digo
as várias vidas dentro
todas babando a seda de um fim único
somos todos ou nada somos
somos
digo
bichos-da-sede
da seca seda
de corações tudo menos enxutos.
Falo
não por mim
mas além do que sou do que tive
o mar por exemplo
de cuja propriedade
me passei escritura
e ainda
em vão
passo.
Nada tenho
nada me custa
tanto
como tudo.
VI
Cada 23 de Maio, volto a ser alto e de pé.
Não vou ter muitos dias assim.
Acaba-se porém menos para mim
do que para outros o ser que se é.
Morro às dez e meia da manhã.
Volve-se-nos máximo ontem o mínimo amanhã:
mas menos a mim do que aos que seguem dando-me voz,
vos por mim fazendo falar a sós.
Demoro.
Não demoro
mas habito
e vivo.
VII
Terei alguma vez de facto sido deveras?
Que(m) de nós (os vários eus da nossa voz)
poderá um dia contar-se em cursiva reportagem?
Esvairemos tão-só em duas datas nosso nome?
Ou para além disso deixaremos saudades gentis
no pequeno comércio que de nós pequenamente
se sustentou?
Pergunto muito e faço tão pouco,
deveria ter vivido mal menos – e bem mais escrito.
VIII
Gente vem e atravessa-me, fluvial, a terra do corpo,
a areia da minha vida. Não hoje ainda será
que a mandarei parar-se, deter-se de ser gente
na minha vida travessa mais que transversal.
Tudo vejo na língua de Portugal: forma de
clarividente cegueira
que uns tantos atribuirão à bebedeira,
outros a nada, afinal, de especial.
Gente vai, eu vou.
IX
Quando me sujeitei às palavras a infância acabou.
Também não demorei a vida quase toda a perceber
que de elas, alheias e próprias palavras, vinha ela,
a infância final.
Algumas palavras terão de ter trocado um homem e
uma mulher para que um ser sujeitassem a ser,
objecto vivo e respiratório de suas vivas simultâneas
arfadas respirações.
Um homem e uma mulher engendram frases,
a partir das que um filho os une para sempre,
para sempre separados na nova carnação.
Se hoje molho as coisas da água dos olhos
de meu Pai, com as costas das mãos de minha Mãe
as limpo – e como ela apreço sabões e conservas
nas mais baixas estantes das hipermercearias
e das livrarias.
Estou vivo: olha o que chove.
O sol depois da chuva espelha o chovido,
o poente mais amanhece o matinal anoitecido.
Há uma verdade qualquer nas coisas, uma verdade
impessoal e intransmissível à fundamental
mentira do que sou-mos.
Nada sei de botânica e no entanto
piso de flores a procissão da minha vida.
O viático comungo dos verticais acamados domésticos,
coração e mente rodapeados em predelas.
Muito séria e ilegível deve ser
esta coisa de viver,
que tanto lápis gasta a brincar.
X
Ganhei a virgindade logo à primeira vez que me deitei
com uma mulher.
Marmoreei-me, por assim dizer, conhecendo a
alheia carne: apresentei um nome, uma data.
Restarei em paz duas datas – e
nenhum nome.
XI
Gostaria muito de, em vez desta desconcertada loja de versos, ter uma oficina de conserto de calçado, uma missão útil, que não esta desconcertada loja de versos, gostaria muito.
Hemistíquios e cesuras não pagam a vida das pessoas, antes a minha abreviam
e adiam
e anoitecem.
Há quarenta e quatro anos que chove, breves foram sempre os sóis azuis nas praias amarelas, tive um cão cor-de-praia, onde andará agora o meu cão.
No dia 10 de Julho de 1975, Ruy Belo escreve
o aspecto humano de uma terra cultivada.
Há quantos anos espero um verso assim,
há tantos.
Pessoas há coleccionadoras de selos, outras
amanham o ventre da terra ou de um peixe, outras consertam calçado pobre, todas ricamente o fazem, eu desconcerto uma loja de versos que não são de
10 de Julho de 1975,
nem o meu cão
havia nascido.
E as mãos – seu quê de taças, de estrelas, de rosas
consertando os sapatos, finalmente concertando o mundo
e a minha vida.
XII
Vi hoje na televisão um documentário sobre fiordes e glaciares da Noruega. Nunca serei norueguês, nunca terei um barco a bordo do que ir buscar um balde de neve para ter em casa água multimilenar.
Estou represo em Portugal, que apesar de tudo me deu, e dá, a língua portuguesa. Vai o maio, mês outrora português, escuro de chuva, enegrecem de dentro para fora as igrejas encerradas e enceradas, encerram-nas sacristães magros e alcoólicos, enceram-nas as deles mulheres, que são baixas e gordas e desconfiadas como galinhas.
É sábado, a vida não sabe que há-de fazer de mim. Desliguei a televisão, vim entardenoitecer-me ante igrejas escurecidas pelo que chove. Estilhaçou-se o céu em cacos de água de lavar vidros, ei-lo que tine nas pedras da terra.
Homens jogam dominós a um canto do café, as pedras do jogo soam chocas como dentes postiços, a luz é camba, os homens parecem-me igrejas portáteis; as mulheres, capelas tisnadas de uma luz apenas recordada, como a dos verões da infância do mundo, lá para a Noruega, não sei.
XIII
Nada conheço de mais ridícul’irrisório
do que escrever
TOCA-ME
a um tu de poema que não toca
nem a quem
lê,
se ler.
Punheta e poesia começam ambas por tu e por tê:
não em vão.
havia nascido.
E as mãos – seu quê de taças, de estrelas, de rosas
consertando os sapatos, finalmente concertando o mundo
e a minha vida.
XII
Vi hoje na televisão um documentário sobre fiordes e glaciares da Noruega. Nunca serei norueguês, nunca terei um barco a bordo do que ir buscar um balde de neve para ter em casa água multimilenar.
Estou represo em Portugal, que apesar de tudo me deu, e dá, a língua portuguesa. Vai o maio, mês outrora português, escuro de chuva, enegrecem de dentro para fora as igrejas encerradas e enceradas, encerram-nas sacristães magros e alcoólicos, enceram-nas as deles mulheres, que são baixas e gordas e desconfiadas como galinhas.
É sábado, a vida não sabe que há-de fazer de mim. Desliguei a televisão, vim entardenoitecer-me ante igrejas escurecidas pelo que chove. Estilhaçou-se o céu em cacos de água de lavar vidros, ei-lo que tine nas pedras da terra.
Homens jogam dominós a um canto do café, as pedras do jogo soam chocas como dentes postiços, a luz é camba, os homens parecem-me igrejas portáteis; as mulheres, capelas tisnadas de uma luz apenas recordada, como a dos verões da infância do mundo, lá para a Noruega, não sei.
XIII
Nada conheço de mais ridícul’irrisório
do que escrever
TOCA-ME
a um tu de poema que não toca
nem a quem
lê,
se ler.
Punheta e poesia começam ambas por tu e por tê:
não em vão.
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