14/06/2008

Uma Só Noite



Escrita ontem, 13 de Junho de 2008, à tarde, esta é a história nº 80 da rubrica radiofónica 1002 Noites, que preenche a terceira hora (22-23h00) do programa Anoitecer ao Tom Dela (todas as noites de 2ª a 6ª feiras, entre as 20 e as 24 horas, em 91.2FM ou
www.emissoradasbeiras.radios.pt).

A fotografia é © de Sandra Bernardo e foi obtida no Caramulo a 21 de Abril de 2008.



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Uma Só Noite


1
Em noites de calor, quando junho ferve de febre, fecho-me em casa e sento-me rodeado de pessoas inexistentes (ou pelo menos invisíveis) numa sala de chão de madeira fracamente iluminada por um candeeiro público que pontifica no largo deserto sobre o qual a janela deixa cair um olhar de vidro há mais de meio século. As palavras dessas pessoas luzem-me no rosto interior da cabeça como velas agravadoras da penumbra da sala onde há mais de meio século me refugio para suportar o calor e a inequívoca desesperança que sempre sucede à boa-fé da mocidade.

2
Uma das pessoas é uma senhora de Dartmoor, sítio aonde nunca fui mas que já cavalguei em sonhos. Com fleuma e vagar, ela repete-me o meu casaco verde-escuro, o meu cavalo negro, o meu lenço violeta emergindo da lapela como uma educada língua doente, as minhas calças de caqui cinzentas, as minhas botas subidas aos joelhos como uma humidade ou uma tremura, o meu chapéu grená e azul. Os dentes dela tinem como colherinhas de prata num pires de chá. No fim de falar, não sei porquê, chora sempre. Vale-me que o faz brandamente.

3
Na indecisão da sala mal denunciada pelo candeeiro do largo, vive também um conde de outro século, um século talvez futuro, a julgar pela insistência monomaníaca com que me serve sentenças relativas todas ao Amor. Não o vejo, como não vejo ninguém, mas não é difícil adivinhar-lhe a jaqueta negra e lustrosa como um guarda-chuva, os dedos amarelos pela consumpção do tempo e do tabaco, os olhos aguados pela madrepérola dos mortos. Fala-me de criadas francesas peritas em amores rápidos a cujos janelos de mansarda acorriam rouxinóis gráficos e flocos de neve duros como pedras. Este chora antes de falar, brandamente também.

4
Nem sempre a ouço, mas acontece-me sentir a voz de uma criança de sexo indeterminável que só posso comparar a um anjo extraviado. Senta-se no chão sobre uma profusão de ramalhetes de cravetas que seriam amarelas se houvesse mais luz. A criança diz rimas de metro alexandrino que me parece provirem dos jogos com que na infância os poetas aprendem a ser tristes. Outras vezes, diz coisas do céu com a segurança de quem nunca povoou a terra. Ouvindo-a, sou eu quem chora – e nem sempre com brandura.

5
Os animais vivos da minha casa evitam participar do gélido cenáculo de tais noites de fornalha. Os que podem, passam a madrugada na rua, regressando de manhã purificados pelo hálito a laranjeiras das imediações do rio. Os que ficam, ocultam-se dentro de si mesmos como palavras pensadas por mães extintas antes de poderem dizê-las. Por toda a casa, antes de me fechar na sala com as vozes, deixo barros com água, a cuja flor os animais remanescentes confirmam a lucidez da cegueira.

6
No único cadeirão da sala onde agonizo o calor da noite central de junho, dou as costas à janela que há tantos anos olha a pedra do chão do largo. Ouço o que inexiste (ou que pelo menos não posso dar a ver) – e nem a euforia do desespero me é dada, pois que há muito dobrei o cabo de esperar o que seja. Fecho os olhos para ver as vozes. Gosto do meu cavalo través as áleas de ulmeiros de Dartmoor, toco-lhe o rosto como as crianças às vezes fazem aos moribundos. Também penso em criadas francesas, mas mais rapidamente do que, delas, os amores vigiados por rouxinóis de caligrafia.

7
Volto à vida quando chove tão intensamente, que pensar é uma estação que chega sempre depois. Fecho a porta da sala, alimento os animais da casa, digo-lhes que os amo a todos um por um, saio para o largo de pedra, sinto nas costas o olhar da minha janela, afago à passagem o ferro do candeeiro solitário, desço uma rua inclinada como uma dor amorosa e demando as imediações do rio, onde fulguram as laranjeiras e por onde colho ramalhetes de cravetas amarelas. Trabalho até que seja noite juntando pedras, baldeando areias e matando jacintos-de-água. Regresso a casa com o único sinónimo de felicidade que conheço: a fadiga física.

8
Ainda o inverno não acabou, já sofro a antecipação das febres nocturnas de junho, quando se me torna inelutável sagrar-me e sangrar-me cavaleiro improvável de casaco verde-escuro e canelas enegrecidas de botas, a língua violeta como um lenço emergindo-me da boca. Adquiro na farmácia, para toda a primavera, frascos de tónico de carne e pastilhas para dormir como se nunca houvera nascido. Assim passei mais de meio século.

9
Todos os anos me parecem futuros como inversos séculos: e uma única noite os une, como o corredor de uma casa vertebra quartos. O tempo é a minha única vidência: nem o caixeiro da farmácia vejo. Vejo as cravetas amarelas empilhando-se a um canto da sala, esvaecido o amarelo. Ouço a luz escassíssima do candeeiro do largo, ouço o inverno desmoronando-se como neve de pedra, vejo a mansarda da minha cabeça vocal acima de saguões e saguões de calamento.

10
Não era esta a história que queria contar-vos, mas foi a única que a tarde me deu. É verdade que vejo vozes, as palavras mais até do que as vozes, mas o caixeiro da farmácia é Manuel Alves Sério Baptista e existe, também ele, como um candeeiro público – ou como eu, enquanto o próximo meio século não termina e enquanto as laranjeiras purificam o rio e os meus animais e a única noite que junho é.

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Canzoada Assaltante