01/06/2008

João, 1963-1998-2008

Viseu, Café Paris, manhã de 29 de Maio de 2008



De nada te adianta, João, teres morrido:
a tua vida vive comigo onde estou, esteja eu onde estiver.

Este 14 de Junho, o teu filho faz dezasseis anos, vê lá tu.

Tu nasceste em Junho também, é uma data que me não passa,
nunca passou, nunca me passará:
22 de Junho de 1963.

Não, João, Joãozito Bininha, quero lá saber de
21 de Agosto de 1998.
Garantem-me que faz em breve dez anos que morreste
no insípido Verão inglês,
sozinho como um cão numa casa apagada,
que uma casa sem filho(s) é uma casa fechada.

Quero lá saber disso, meu tão querido ido Amigo,
quero lá saber: sabes, sei tão pouco,
sei tão poucas coisas.

Devo estar a envelhecer, João, já nem olho tanto
a beleza das mulheres que passam como o Tempo
passa.
Devo estar a envelhecer, ó João da Bininha,
pois que amo os meus amigos com uma força
que só me pode fazer mal,
não sei,
sei tão pouco,
sei tão poucas coisas.

1970: tu, eu e o Jorge Joquinha.
Tu és o João Manuel Arcanjo Dias.
Ele é o Fernando Jorge Pereira Fernandes.
Eu sou o Cão, o Daniel Leite dos Santos Abrunheiro.
Estamos os três na escola primária,
o senhor Professor Elias Rodrigues Faro
ensina-nos as letras, os números, as datas.

João: eu aprendi as datas.
21 de Agosto de 1998.
14 de Junho de 1992.
22 de Junho de 1963.

João: eu aprendi as letras:
J-o-ã-o-M-a-n-u-e-l-A-r-c-a-n-j-o-D-i-a-s.

Dias e dias e dias e dias: a vida, a ávida vida.
João: todas a letras de D-i-a-s
Fazem parte do plural de
V-i-d-a,
sabes?

Também que ideia a tua, Bininha,
morreres-nos assim:
longe, num Verão parado para sempre,
numa casa fechada,
numa escura Londres que não conheço,
tão longe da escola,
tão longe do teu filho,
tão dentro de mim,
do Joquinha,
do teu irmão Toninho,
caraças, pá.

Garantem-me que faz dez anos que tu.

Não.

O Cão diz-te que não
ão não não ão ão ão
diz-te o Cão.

Tenho as tuas últimas cartas em minha casa.
Pediste-me um favor, uma coisa para levar ao Tomás.
Eu levei, João: sou homem da minha palavra.

Tu agora dormes.
És agora um nome.
És só duas datas? Mentira.

O senhor Professor Elias Rodrigues Faro
também já dorme.
A quantidade de gente minha que dorme já,
caraças.
Imagino-vos perto um do outro:
o meu coração é um esconso lugar estreito,
só poderíeis estar um do outro perto.
O meu Pai também aparece muitas vezes.
Confundem-no ainda os meses de Abril, Junho, Novembro,
como aos anjos agnósticos muito acontece.
O meu Pai é Daniel dos Santos Abrunheiro,
1917-1994.
O meu irmão Jorge também aparece muitas vezes,
1954-1986.
A vida parece que é isto,
não sei,
sei tão pouco,
sei tão poucas coisas.

Hoje, a manhã resume a vida: já
choveu, faz sol agora, há-
-de ser noite,
um dia.

Aprendi as letras todas, João,
mas o segredo está nas datas:
tu vives, tu morres, tu nasces, tu matas.

Às vezes, entristeço devagar como uma flor sem água.
Às vezes, vejo-te nitidamente, ouço-te rir
escandalosamente, volto a cozer contigo
um bolo em casa de teus pais, ao pé da
Igreja de Nossa Senhora da Piedade
(tende piedade de nós),
fizemos chá, tu serviste-me o chá
numa caneca de louça que tinha uma piça
das Caldas dentro,
a colher não mexia o açúcar,
tu riste-te fartamente
da minha surpresa,
caraças, pá.

Tudo isto é para te dizer que me preparo,
que todos nos preparamos,
para te rever, João,
não sei,
sei tão pouco,
sei tão poucas coisas, João,
meia dúzia de datas
e as letras todas.

Tudo isto porque envelheço
com ou contra a tua embalsamada juventude,
envelheço para, de novo,
ser novo contigo, na escola,
um destes dias,
D-i-a-s,
João Manuel,
vero Arcanjo,
um destes 22 de Junho
inaugurais para sempre.

Eu pouco sei, mas tu sabes.

Olha, está a chover,
vem daí comigo,
connosco vem tu daí,
o Joquinha haveria de gostar,
o teu Tomás haveria de gostar,
o Toninho haveria de gostar.

Isto eu sei,
João.

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Canzoada Assaltante