06/06/2008

MISTER CHANGUITO KNOWS WHAT I MEAN

MISTER CHANGUITO KNOWS WHAT I MEAN
ou
C’EST-À-DIRE AVEC CEPENDANT
ou
SEIS AZULEJOS PARA PAINEL DE METROPOLITANO
ou
O SONASOL NÃO FOI ’INDA DEVIDAMENTE PRESTIGIADO



Viseu, Cafés Paris, Avenida e O Bárbaro , manhã de 6 de Junho de 2008


1

Escrever versos é um bocado como lavar a cabeça com sonasol.
Porquê, não sei.
Sei, tão-só, que há muito me deixei de realidade(s), em prol de uma vida irrelevante ou, no mínimo, em baixo-relevo.
O mais que faço de, por assim dizer, importante é indicar a motoristas de fora direcções de ruas numa cidade que não conheço, esta.
Faço precisamente o mesmo da/com a poesia.
Por causa do sonasol, as minhas primeiras cãs são de um branco-esmalte de banheira, tendo-se-me porém amarelecido o sorriso daquele amarelo-ferrugem de pia lavatória submissa a perpétuo pingo de torneira vitalícia.
A Sé de Viseu? Perfeitamente. Faça como o País: o senhor vá descendo esta rua. Ao cabo dela, corte à esquerda ou à direita – é igual e dá no mesmo, posto ser sempre a descer, não sei se ’tá a ver.

2

Gosto de mesavizinhar, no café, cavalheiros apagados como estearina molhada e como eu. Na solidão nocturna das manhãs, gosto de tomar perto deles a minha água mineral à base de engaço. Com o indicador da mão que não escreve, depilo por dentro as fossas nasais, observado de esguelha por eles, esses cavalheiros tão morais que bebem galões com boquinha-cu-de-galinha.
Eles jogam muito no totoloto: têm esperança, palavra hebraica que significa “se-me-saísse-nunca-mais-fazia-nada-nem-na-nem-da-vida-como-aliás-nunca-fiz”.
Eu gosto de vê-los jogar. Eu gosto de vê-los jogar fora – como faço eu de mim sempre, mas sempre perto deles, à excepção da cena do galão.

3

A vida é rápida.
A existência é que é lenta, sobretudo a partir do momento em que a mulher nos sai de casa para comprar cigarros e até hoje.
Devo afiançar a Mister Changuito e a V. que nunca tal me aconteceu: jamais fui utente de mulher que fumasse, muito menos em aviões fretados a SG-Charter. Também não sou home’ de confundir imobiliárias com imobilismo, nem alimárias com automobilismo: cuido das minhas palavras como uma velha de mansarda rega a celibatário mijo as respectivas sardinheiras ou como um bancário obtuso e divorciado pendura à janela a atoalhada bandeira nacional em dia de procissão de São Cristiano Ronaldo.
A vida só é lenta (e a existência, quieta) quando, desfraldado e transido de fria beleza como um glaciar portátil, leio o meu John Le Carré, o teu Thomas Bernhard e o derradeiro bilhete dela, que alegou ir a cigarros e cavou com um bancário divorciado e obtuso e nacional como a bandeira.

4

Claro que, cedo ou temporão, ainda posso vir um dia a ser humilhado em lãgerí quando, distraidamente, coçar em público uma anca. Quem diz “anca”, diria, à la Eugénio de Andrade, “flanco”.
Uma pessoa coça-se, é natural. Tidos em conta os tempos que (não, de modo algum) correm, também o cólã é natural. O galão é que não, de modo algum.

5

Em casa
as gatas povoam o intervalo dos móveis
que não tenho.
Roubo
nos cafés
pacotes de açúcar que
em casa
dissolvo no leite delas
para que saibam elas
quão diabética pode ser
a amarga vida.

Em casa
tenho uma máquina de triturar retratos
outra de resolver problemas de metrificação
outra de decifrar críticas teatrais
outra de medir a tensão
outra de avaliar o grau de pureza dos fosfatos do Chile
outra que cardiogramatiza o urro lácteo dos cetáceos.

Em casa
tenho eu muito respeitinho por cetáceos
que
como os adolescentes
passam a breve rápida vida da adolescência
com a cabeça cheia de espermacete.

Em casa
serei feliz sábado à tarde
sentado no chão da sala por ausência
de sofá e de talento
e de mulher não tabágica:
pode a vida ser soez e assaz
trágica
mas a minha não
que eu até já li Somerset Maugham
e até Fernando Namora.

Em casa
dos outros
é raro mas acontece
vagambulo entre alheias máquinas
por exemplo

em casa de um poeta conceptista
dou com a máquina de ceder a argumentos contrários
em casa de um jornalista do Correio da Manhã
dou com a máquina de lavar sangue do chão
em casa da cantora Ana Malhoa
dou com a máquina de fazer retratos do Che Guevara
em casa de um amor que tive
dou com a máquina de agrafar olvidos
em casa da minha extinta avó materna
dou com a máquina de cremar leite
em casa de um contador da luz
dou com a máquina de desvolatizar andorinhas
em casa do primeiro dos ministros
dou com uma máquina de fazer canhotos de rifas de quermesse
em casa de um ajuntador de ranchos
dou com a minha Mãe aos dezasseis anos
em casa de um administrador da TAP
dou com um administrador da RTP
cujas mulheres saíram a comprar cigarros e até hoje
em casa de uma professora de Português
dou com a máquina de lacrar livros
em casa de uma professora de Ornitologia
dou com a máquina de livrar bicos-de-lacre
em casa de um onicófago tristíssimo
dou com a máquina de desunhar alegrias
em minha casa
dou por mim maquinando manguitos a fantasmas
que tomam galões e atitudes e diabéticas usuras
do meu anoitecer
cada manhã
muito cedo
temporão
e
serôdio.

6

Fora de brincadeiras, haveria que reformular tudo isto:

a mecânica confessional da respiração;
a esterilização ainda não obrigatória do autarca (qualquer autarca);
o cotejo tradutor (de Rilke) versos Paulo Quintela versus Vasco Guta Moura;
a questão Sagres/Super Bock (com fundo trinadinho coimbrão Topázio/Ónix);
o desejável congresso plurilingue em torno do Clube de Futebol Os Belenenses (com retrato em PowerPoint, ou menos, do Américo Thomaz em sapatilhas da Marinha Portuguesa);
a questão da Água e dos Que Isso É que Nunca;
esta comichão que sinto nos arredores do coração à base de engaço e de nomes de mulheres;
os fados únicos de António dos Santos de Alfama;
o olhar da corça em iluminadura materno-juvenil aos dezasseis anos;
a noite (nunca uma qualquer noite) no Bar d’A Barraca, ao Largo de Santos, em Lisboa, tão perto do rio com nome de cão;
a ânsia odorífera-neurológica do mar;
os bons-dias dados e os bons-dias recebidos numa fresta da manhã;
o existencialismo sans-dieu-ni-sartre dos pardais portugueses;
a diluição geriátrica dos bancos de jardim;
a mafalda veiga e a ana malhoa juntas com luís represas rondando perto;
as idas a Salamanca em demanda de fugir daqui-disto;
o desassossego aritmético da ideia de incontáveis mortos numerados;
as gavetas de ferro com clips de plástico dentro;
o meu amigo João circumnavegando o mundo com uma simples pressão de dedo da mão que não escreve;
o Dalai Lama e o União de Lamas;
o meu amigo Rui Correia aos olhos de jovens de treze, dezasseis anos;
a ignorância em geral fungando seus particulares bolores lusitanos;
os lápis nos chineses a dez cêntimos/unidade (uma mina);
os telemóveis pipilando pássaros-sms enganados no escuro por causa do alaranjamento das autostradas;
o senhor maneluísgoucha vestido de branco numa antemão de couratos e administradores da TAP e viúvas comovidas;
as rulotes de bifanas pontuando a néon o torrão-de-alicante de toda a lata de cerveja;
o dâne-bráun moimenta-de-newark-da-beira piscando o olhinho no telejornalinho;
a moimenta-da-beira-e-a-chaga-do-ombro-de-Cristo-a-ombros-com-a-cristandade;
a voluta incensa e insensata do lírio, do gladíolo, do oxiúro e da serra-do-montemuro;
o Ser ou Não Ser, de Maria do Céu Guerra;
a minha sobrinha-filha-irmã-Mariana Abrunheiro Lima Saraiva;
o tempo do Rio Tejo tornado Mondego e Pavia no meu voluntário exílio;
a circunscrição fiscal e a circuncisão em geral explicadas em diferido por Fátima Lopes (uma das duas) ou por Paulo Teixeira Pinto(r) ou por Paula Moura Beatriz dos Livros Pinheiro Costa;
a delicada franja morfológica que o/apõe cultismo e conceptismo, mas Rimbaud também a Verlaine com Ferré rondando perto;
e o sonasol e a nossa vida,
devagar.

2 comentários:

LM,paris disse...

Bonjour daniel, mourir oui, masi de mort lente...dizia o Brassens.
POis fico pedrada com a tua escrita, ponctuada de imagens apunhalantes, tristeza bordadinha de risos nas pontas, saltos no escuro, torcidelas de pés e de tornozelos, desvios e desvaos, o tal café sempre a esfriar, e o fado do Antonio dos Santos. Daniel, so tu...a minha mana de coeur, é a filha do cantor de fados
Antonio dos Santos: " Gaivotas em terra de asas dobradas, marujos sem rumo, sentados num bar(...) meninas morenas sonhando em casar", até fico tonta.
A lingua toda rija e a esgueirar-se fora da tua pena. Poes tudo em alvoroço, até a escrita!!!!
La vie est courte, les jours sont longs, lembro-me se uma coisa assim num filme com o Philippe Noiret...
lembrou-me o tempo -espaço que pousas na mesa, e hà uma frase proxima desta, nao?
Vai aquecendo a bica...
beijos, bon week-end,
LM

Livraria Poesia Incompleta disse...

obrigado, muito obrigado.
um abraço

Canzoada Assaltante