10/04/2008

Três Colecções de Entrelinhas


Linhas:
Viseu,
manhã e tarde de 10 (I),
tarde de 9 (II) e
tarde de 5 (III)
de Abril de 2008
Foto: tarde de 10


Sinto que o que escrevo tende cada vez mais para o – ou se aproxima do – silêncio. Não digo o silêncio ruidoso da mudez. Digo o silêncio das pausas da música. Não pode haver música sem pausas, toda a gente sabe isso. Digo de outra maneira: sinto que o principal do que tenho (terei?) a dizer, será nas entrelinhas, que não nas linhas propriamente ditas/escritas, que pode ser ouvido/lido. Enfim, nada do que sinto e escrevo tem qualquer importância transcendente.
Ficam aqui, a partir de hoje, a partir de agora, três colecções de (entre)linhas. De uma delas (a I) consta uma passagem pelo cemitério da minha actual cidade. Peço-vos que não entreleiam em tal passagem qualquer necrofilia, morbidez etc. Não. Não é essa a entrelinha: não sou grande entusiasta da vida, mas também não sou uma espécie de viúvo-alegre de mim mesmo. Aceito, é tudo, a morte como a
outra
face da moeda: do óbolo que nos é dado, a cada um de nós, no acto (involuntário – mas acto) de nascer.
Também é verdade que o meu Pai faria hoje 91 anos. Fê-los na mesma, claramente, obscuramente – do
outro lado. Não me sendo possível ir hoje a Coimbra visitá-lo onde dorme, fui senti-lo ao nobre campo-santo de Viseu. Fiz bem: até porque, nas entrelinhas dos nomes dos outros, leio sempre o dele com o sorriso de quem agradece, e paga, a moeda que ele e a minha Mãe me deram para eu gastar em música e em silêncio.


Viseu, noite de 10 de Abril de 2008

******

I. VOU AO FIM

Vou ao fim da rua ver o fim da vida.
Vejo e volto a pé: é só uma rua, é uma vida só.

*

A chuva nas ruas estreitas.
A drogaria, a boutique, a confeitaria, o antro com chineses dentro.
Quão terrível pode tudo isto ser?
Brincamos com o fogo ou não em o tempo, o estreito tempo de chuva?

*

Em montras, fatos completos de homem sem homem dentro,
vestidos de mulher que mulher alguma despiu para mim.
Quão terrível pode isto ser?

*

Bolos de aniversário, de casamento.
Quão terrível pode ser para si o não comedor de bolos?

*

Frios incêndios lavram à chuva na cidade: nós.

*

E quem nos negaria, ante cada lar, dele o carácter oracular?

*

E a poesia nossa de cada dia,
que, como um pão de ar,
dia algum nos pode dar.

*

Nem tirar.

*

Da orla do mar,
não nos chega o sal,
chegue-nos quanto sal chegar.

*

Vou ao fim da minha rua ver o fim da minha vida.
É só a minha rua, é só a minha vida.

*

A minha vida não é minha nem tua,
quando eu não te voltar do fim da nossa rua.

*

Vi o homem que cheira a oliveiras.
Quem me dera sê-lo, ao vento nelas.
Não estar dentro do inodoro Anjo,
não me ser por dentro sem elas.

É um pastor: pelos fins de tarde,
torna ao casebre, pela mão a vida.
Eu sou só chuva que ao vento arde,
vendo eu que é tarde, à despedida.

*

Não é dia de roxuras.
De cinzas sim somente.
Prumei pelas ruas do cemitério lendo os derradeiros poemas:
nomes, números: contas de gente.
No talhão militar, surpreendi os combatentes deitados,
mais do que nunca caídos.
Continua o jogo em os jazigos de família:
juntos todos para o chá entre a mesma mobília.
Lavores de granito em quietas danças.
Alguém que perdoe a Deus: vi crianças.
’inda assim, digo-o por mim (que tenho alturas),
não, hoje não é dia de roxuras.

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II. ENQUANTO A TERRA NÃO

O mundo é o templo do tempo.
A cidade amplia na pessoa a solidão.
Terminei o Anjo, estou cansado e doente.
Não sei o que fazer pela cidade,
não sei o que fazer da cidade.
Por horas torno à vila da montanha.
Está frio, o vento corta.
Torno a desejar a sombra das latadas
em junho ou setembro,
ler um livro, fumar pouco,
comer fruta, beber água nua de tão pura,
fazer a sesta enquanto
a terra não convoca
o terminador.

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III. PARES

Por exemplo morreu
mais um vizinho meu

Ruy Belo
O Problema da Habitação - alguns aspectos



1 (perante dois versos de Ruy Belo)

Seremos um dia o vizinho que morreu
e seremos então um ele
não já nunca mais um eu.
O senhor Nunes da minha rua
havia dois senhores Nunes na minha rua
morreram já os dois
não eram irmãos
são-no agora
suponho.
O que morreu primeiro não
mas o segundo foi em vida testemunha
de jeová.
Agora mais do que nunca
o será
suponho.

2 (perante duas pessoas num bar)

É um casal maduro como fruta ao sol.
Ambos de brancas meias-luas na base das unhas.
Lavados, claros, encanecidos sem pressa.
Ele – quase nédio, de próspera próstata.
Ela – faneca longa, bonita, cinquenta e picos.
Ocupam de jornais uma mesa, café, água mineral.
É um casal no sábado que amadurece.
Não é ’inda a morte, não ainda, não a memória e não
o olvido.
São uma parte do meu trabalho de hoje:
gente que esquecerei – como vós
estes versos.

3 (perante duas flores não fechadas, não ainda)

Não nos demos toma-lá-dá-cá as melhores flores.
Há-nos já muita fadiga nos braços.
Outras flores trocámos por sangue
em horas e jornadas carburadas.
Frequentamos pastelarias, praças, pequenas salas,
passadiços. Lembras-te?, havia passadiços na praia,
quando buscávamos entorpecer de gelados o sábado.
Com outro homem uma, outro com mulher outra.
É uma das (a)mores cedências do catolicismo ao liberalismo.
A nora da Rainha de Espanha com seu telejornalismo d’avant:
gordura de galinha perdoada a hortelã.
Suponho que este pudesse ser o teor da conversação entre
os dois do maduro casal
do poema 2,
que,
voz,
esquecestes.

4 (perante duas palavras)

Ao meu corpo terei ’inda de agradecer um
dia
a
vida
dele.
E que todas as três letras de
dia
caibam em
vida.

4 comentários:

Anónimo disse...

já é a segunda vez que venho ler, daniel ;) gostei muito. boa noite e um beijinho. bom fim de semana.

LM,paris disse...

Sin tao daniel, sin tao!
( bonjour au vietnam)
Saigon ville folle en mouvement perpetuel de scotters qui tournent en rond, toute la famille dessus.
La vie sur les trottoirs sales, les baratas voadoras, as osgas no hotel cinco stars, os encontroes, dois dias sem atravessar a rua, o medo de ser atropelada, nao beber a agua , melgas traidoras, tueuses...o inferno da Dante no mercado com cheiro a vomito, 42 graus sem ar, corredores entre tecidos atrapalhados, pessoas surgindo das cores, do calor, do cheiro que estonteia os sentidos. outro mundo, do outro lado do mundo.
aqui leio o seu texto, faltou-me este alimento, de pomba, a sua mao estendida a dar -nos este pao, esta migalha que se mastiga até exaustao. O da sua mae, como sempre é aquele que me condiz. Passe là por casa. came on( merci) daniel, là vi os caes em gaiolas pequenas latindo, antes de serem vendidos para acabarem nos pratos...comidos
com baguettes.
um beijo ainda com sono. Lidia

Anónimo disse...

E pronto, e continuamos nisto, a fingir verdadismos todos os dias:

"Sinto que o que escrevo tende cada vez mais para o – ou se aproxima do – silêncio. Não digo o silêncio ruidoso da mudez. Digo o silêncio das pausas da música. Não pode haver música sem pausas, toda a gente sabe isso. Digo de outra maneira: sinto que o principal do que tenho (terei?) a dizer, será nas entrelinhas, que não nas linhas propriamente ditas/escritas, que pode ser ouvido/lido. Enfim, nada do que sinto e escrevo tem qualquer importância transcendente."

Daniel Abrunheiro disse...

Iur: you know what I mean.

Canzoada Assaltante