18/04/2008

Pastor de Crepúsculos



Viseu, manhã de 18 de Abril de 2008


I. ONTEM À NOITE

Nada sei de ontem à noite.
Que ontem, que noite?
A nossa vida é tão capaz sempre de não saber nada.
Tão capaz de desconhecer ontens, noites, noitontens.
Pelo chão da rodoviária um vento arrasava arrastava
rosas e rosas e rosas.
Pareciam papéis vermelhos, peixes escarlates
levados pelo vento varredor ao chão de escarros e manchas de óleo
infecto.
Foi isto ontem à noite?
Não sei. Nada sei.
Levanto-me da cama, visto a mole armadura, ponho
o capacete de folhas de oliveira e saio
e entro no túnel dos dias
e sofro pequenas felicidades divisíveis em versos.
Isto é muito à base de imagens.
A chuva fechou o mundo no mundo.
As cadeiras das esplanadas à chuva entristeceriam se pudessem
como nós
dar-se a esse luxo de pobres: a tristeza feliz
de ver chover.
As entradas e as saídas da cidade já fervem
de metálicas moscas ligeiras pesadas, os olhos ligados
como se fosse de noite
e é:
a chuva anoitece as manhãs,
só as árvores e o rio a bebem.
Nos meus melhores anos, fui tão sedento quão
ele e elas,
rio e árvores.
Hoje
(mas que é hoje?)
a minha boca encaixa a prótese dentária
os lábios são-me rebordos de cinzeiro,
as palavras não me são água já
mas torrões de pó, nem pedras sequer.
Só os olhos resistem.
Não os que para fora olham
mas os que por dentro fitam miram manam arrasam
arrastam rosas rodoviárias por gare cuspida e oleada.
Ontem à noite
terei dormido na fímbria de pinheiros
da orla da barragem.
Terei caído subido de peito na constelação
cimàbaixo da minha condição,
à vossa idêntica por natureza.
Cerrei para fora os olhos: e as maravilhas
brotaram de dentro: gramáticas, fotogramáticas,
imparáveis, aladas, plumíferas e plumitivas e desasadas:
e tão antigas.
Muitas imagens de redactora natureza.
Não preciso de uma rapariga ao canto do café
tomando chá pensando na vida
para ver a rapariga ao canto do café
tomando chá pensando na vida.
Na noite acumulo ontens, esse hojes vorazes,
rapidíssimos, perpétuos.
Imagem da mulher viúva do comendador.
O município mandou fazer um busto do grande falecido.
A cabeça do comendador ao alto da pilastra
como a cabeça de S. João Baptista ao alto da bandeja.
Toca a banda, ora o presidente, depõem rosas.
A multidão mínima vai-se embora, fica ela.
A viúva olha a cabeça do comendador, fala-lhe:
Noites e noites de frio, dias e dias de chuva:
mereces tudo isso para sempre, meu filho-da-puta
.
Estas imagens na cabeça: somos, também,
bustos de nós.
A nossa cabeça emoldurando pelas ruas o nosso rosto.
O nosso rosto pelas ruas arrasando arrastando os nossos olhos.
Eu vogo pelas ruas o meu século XIX pessoal.
Mal vejo os carros, o que é delicioso perigo.
Ilustro a insuficiência da vida com gravações:
sons, desenhos a aparo de ferro, versos e versos e versos.
Talvez eu seja tão feliz quão um pássaro alto.
Entrei nisto adentro, neste casaco castanho, neste homem adentro.
Levo comigo os meus: irmãos nas mãos,
os meus homens colhidos e colectores,
cobradores dos meus impostos
dias.
Menos sei do que anseio.
Tento escrever a música imaginosa:
o rápido passarito aceitando-me pão como se mo roubara;
a mulher cambaleando na ponte de pau, pesam-lhe os cestos;
o aborigenismo insolente dos ciganos;
o cavalo solitário no baldio tasquinhando a rala erva;
o dramatismo sossegado dos cafés vazios;
o jornal oblíquo nas mãos do cavalheiro vertical;
a neve respiratória das fontes;
as datas que inscrevem os prédios na eternidade fora das pessoas;
Maria concebida sem pecado original para Portugal;
as estátuas discursando o alto silêncio da Língua;
o café do teatro com falas de serradura pelo chão;
as rasas rosas rodoviárias de vento varridas;
as nossas vidas.
Reverei hoje (mas que é hoje?) o rio.
Ontem serei.

II. HOJE DE MANHÃ – 1

Hoje uma folha de mármore é o tampo da mesa,
amanhã outra de igual pedra será o tempo.
Consolam-me as certezas inadiáveis da vida e da morte.
Gosto de escrever sobre mármore e escrevo,
tenho tempo e tenho tampo.
A outra mesa, restrita assembleia de quatro homens duas mulheres
troca entrecortadas frases cafeínas,
fumam os homens fumam as meninas,
gosto de vo-los escrever a vós,
que por esta hora decerto tereis tomado já
noutro café o mesmo que aqui é servido.
O nenhum sentido de tudo tem todo o significado.
É na mesa ao lado: todos mais jovens do que eu,
que envelheço à força toda com toda a saúde,
mais em mim constante que a virtude, mor dos versos.
Um sétimo chega, narra um acidente de viação:
há quantos anos quantos versos faço o mesmo?
Saem elas a trabalhar nas lojas, demoram-se eles ociosos
(se calhar são poetas também).
Agora reparo que um é barbeiro, não deve ter
ninguém a quem aparar o cabelo como o jardineiro
que às sebes disciplina enquanto pensa na filha doente
ou nas possibilidades do Sporting na final da Taça
ou no não ter ido para a Noruega quando era tempo
– no tampo agora reparo.
Gosto das veias do mármore.
Gasto da carne petrificada do mármore.
Se de muralhas-da-China sitio o coração,
faço-o por ademanes de auto-protecção.
Escoro de vivas veias o mármore pessoal,
tampo e tempo de um homem nascido em Portugal.
Rémoras somos ao tubarão do tempo coladas,
medusas de água vemos ouvimos falar: as casadas,
que manhã tão cedo saem às compras
como eu aos postais e aos crepúsculos e vós não sei a quê, a quem.
Era a poesia tudo quanto queria – e prosaica me é a condição.
Diz-me Lídia que revisite minha Mãe, fá-lo-ei breve
– que tudo é breve quanto faço e posso
e peço e passo.
A um tempo superior persigo
enquanto o quarto final me não encerrar
pastor de crepúsculos.
Redigindo irei tantos tontos crepúsculos
enquanto não.
Irei talvez em Maio a Lisboa
a ver a Mariana o Tejo a Outra Banda
e serei feliz
uma vez na vida
na Cidade
onde como de costume entristeci
os quase três anos que quase lá vivi.
Outros topos se me colam ao coração como pessoas:
Santarém às Portas do Sol;
Parceiros de Leiria às da Lua;
Foitos do Louriçal vizinho de laranjeiras;
Aveiro num café lendo Dinis Machado;
Matosinhos para versos e para vinhos;
Peniche recebendo o luto do mar;
Coimbra com a São Pinto na Leitaria do Raul;
e Viseu ardendo à chuva em mármore.

III. HOJE DE MANHÃ – 2

Passou a manhã passámo-la nós
passou a manhã por nós e nós por ela
entre ela e nós há negociações
da mais ínclita olvidável importância.
Dela e de nós guardará a tarde a maior distância.
Isto para não falar na noite.
Estamos o que somos aqui
embora noutra hora demore como demora
o que somos se calhar o que fomos
mas pomos o que temos sobre a terra
escreveu Ruy Belo perante um
girassol de rio de onor
visto hoje na andaluzia.
Passámos já todos a manhã do dia.
Já de nós esperam horários o almoço a tarde.
Cumpriremos com as mais solícitas solicitações
essas e muitas outras obrigações
entre as quais a de estar vivo perante o que chove
e a neve e a ave e tudo o que vive
ontem esta manhã e amanhã.

IV. HOJE DE MANHÃ – 3

Despede-se desta manhã o pastor de crepúsculos
homem da estatura dos outros como ele minúsculos.
Levantou-se cedo e tudo o que de si quer
é que valha quanto cada ovelha vale e bale
pelos vales da sua poesia.
Tudo quanto quer e pode é cada dia.
Catedral de gelo cada estrela iliba Deus
da herança da tristeza
chamou-lhe ele um dia livro-arbítrio
no átrio de vitríolo de outro verso outro dia outra manhã nocturna
de outro poema atirado à cara
como o vento que nos castanheiros deu e desceu
à terra a exaltar seus anjos
seus pastores.
Faz o pastor muita força com a mão no lápis amarelo
almoçará um caldo de flores da terra
proteica e prometeica e prosaica é sua condição
embora isto seja Viseu+XXI e não
a Grécia-VI
no calendário que Cristo divide e multiplica.
Honra a quem fica
e teima e se obstina em quanto o destina.
Um pouco de sol espera o pastor na face
de feição.
Pela tarde, tudo lhe será tarde
– e tampo e tempo.
Ontem será entre os que foram os que são
e entre eles repartirá como a pombas pão a sua prosaica condição.
De alheias vozes migará vindimará novas uvas e trovas e chuvas.
Reconhecerá ruas e animais e mortos pelos nomes
atento o Pavia à sua inclinação pluvial:
é um pastor de crepúsculos nascido em Portugal.

3 comentários:

alberto augusto miranda disse...

parcialmente (re)publicado na incomunidade

Anónimo disse...

parcialmente (re)publicado na incomunidade

Anónimo disse...

tratando-se da querida amiga lídia, será bom seguir o que ela te aconselha, daniel. também não sei da noitontem nem tão pouco doje. mas gosto sempre muito de te ler. um grande beijinho *

Canzoada Assaltante