Nota: se pudesse, teria juízo e deixar-me-ia de versalhadas. Não posso. São dos últimos dias, os XX + 1 poemas que se seguem. Está lá o que penso ser tudo: o que é pouco, decerto, para uma vida. É o que é. Alguns textos são rimados. Outros são apenas maus. Siga.
XX Poemas para um Sossegado Terrorismo mais Um
I
Envelheço devagar no vidro do café.
Estou bem, Mãe.
O museu do meu coração não encerra às segundas-feiras.
Talvez a vida me tenha envenenado de amor, Pai.
A antiga dona do café levou as flores com ela.
Tenho a mão esquerda onde havia um vaso:
sinto a pulsação do ex-coração vegetal ainda.
Os carros na noite sangram farolins.
Estamos a beber cerveja fria na noite do café.
Os meus amigos gostam de futebol:
as almas deles usam calções.
Hoje vi uma mulher bonita em sonhos.
Ela dizia branduras a um homem a meu lado:
nunca me olhou. Eu não a odiei.
As palavras são as cadeiras das palavras mesas.
Jornais abertos como borboletas nas mesas:
a Primavera a preto-e-branco.
Tenho um rio drenando a cabeça.
Não demorarei muito, como toda a gente.
Anoiteço devagar nas galerias da manhã.
Estou bem, minha Irmã.
Volitam as folhas: das árvores, do calendário.
Sim, somos ilhas, minhas filhas.
Bruxuleia a petróleo a luz dos meus olhos.
São já animais adultos, as minhas mãos.
Quadricula-se-me a visão do mundo.
Sabe-me a boca a lápis.
E um rio é uma língua: e fala.
Drena-me a cabeça, molha-me na cama.
E a manhã e a noite resfriam ouro e prata.
E os homens sós do entardecer corvoam, negros,
desde manhã tão cedo nas ruas do comércio
a que não desaguam fregueses nem carteiros.
E o vento irrompe aplausos nas árvores,
marejando-as de invisíveis plateias.
Chego devagar a cada tarde como a uma praia.
Litoral é o coração que porto – e estrangeiro.
Saio a ver homens e animais por caminhos
que o vento talhou nas fragas vegetais.
É poderosa a minha condição – poderoso desperdício
de hélio de estrelas e de estrume temerário.
Sobrelojas de casas-de-pasto efluviam bifanas
e sovacos de mulheres oleaginosas em cozinhas.
Pasodobla a rádio intermitências sentimentais,
não longe as galerias do teatro emitem galhardetes
dramáticos, a sete e quinhentos um assento de coxia.
Uma forja de cactos enrubesce ao sol da manhã.
Assombram-se pinheiros de si mesmos, na cal.
Casais casados pastelariam sevícias mínimas:
torradas e café-com-leite, folha a folha de calendário,
atentas as veias ao colesterol da melancolia.
Em campos aguados de arroz, longe, vigora o livor
das barcarolas de cana atiçadas por meninos sós.
E eu vejo isto como se tanto cinema fosse viver.
E desejo as boas-tardes aos que de noite passam,
na noite de cada manhã.
Eu digo águas frias correndo laranjais – e decerto
nada mais do que isso seja ourives na minha vida,
a não ser ter sido tão amado em menino
por tão poderosas sombras da infante casa, onde
vigoravam a arborescência glandular da Mãe
e o museu particular do Pai, sonhos-iguanas
enfrascados em éter e décadas e décadas
de pó – e de águas frias lavando ouro
e prata e laranjas e pedras e horas.
Demorarei pouco, as mãos na cinza, nestas mãos.
Gastrópodes estrelas me surgem elas, areias de leito
patinhando convulsas, na deságua do tempo.
Isto não apresenta mal algum, terça-feira.
Berlindes entrechocam infantis cristais em adros
platinados de plátanos ondulantes ao velho vento.
Passa um homem de chapéu, talvez o poeta
Afonso Duarte, talvez um gandarês triste mais
– e sem nome, como todas as sombras de chapéu.
Não passa homem de chapéu nenhum:
escrevo um poema na praia – perante mar algum.
Recolherei, cada noite, o pão de prata do mar do sono.
Se não durmo, ausculto: pedrarias e faróis: iluminuras
de um triste monge copista de estrofes desumanas.
O que pesco – uma cara azulada num vidro de café.
Portas envidraçadas de sanatório abrem incultos declives,
onde arde a raposa sua flama ruiva, corredora.
O circunspecto coelho será mastigado – outra vez.
E uma malga de sopa sossegará o versejador, ao frio.
Que é feito das manhãs atlânticas quando
minha Mãe, fértil ainda como uma margem do Nilo,
ainda brava, adquiria legumes e peixe como um
fernão-de-magalhães claro?
Que é feito dos pincéis de meu Pai sem as mãos dele?
Agora é tarde, não de tarde.
Os cus das raparigas na pastelaria são
de cortado tangerino ébano. Distraídas,
folheiam conversas e revistas.
Pedem folhados de salmão em massa-tenra,
tasquinham mentóis edulcorantes sem travessia
de Graham Greene, quando muito (tão nada) Paulo Coelho.
Braveja na tela o idiotismo nacional de
jornalistas e depoentes, ao sabor do faz-bem
e do fascismo que toda a ignorância é.
Mas eu estou bem, Mãe.
Envelheço de lado um pouco menos que de frente,
no vidro do café sangrado de farolins,
entre cacos de cerveja e cascas de amendoins.
II
As flores cheiram como animais quietos.
Dá-lhes-nos o vento insensatas partilhas.
Termos e sentimentos decorrem obsoletos.
Acordo de noite a pensar nas filhas.
Rosas graduam a cor do perfume.
Gatos penteiam, a língua, o pêlo.
Eu sinto na cava a ânsia do cume
e mesmo sem espelho ordeno o cabelo.
De resto, cordato, vou cheirando flores.
Lojas de bifanas ondulam aromas
de fritos, cervejas e outros amores
que cheiram a flores secas em redomas.
Do tudo que a vida mais me der à míngua,
recado trarei à pátria em língua.
III
Venha de onde vier uma luz de barcos
suas caras brancas traçadas a azul
sua humana fadiga suspensa no abismo
que a horas lunares cede pratas e mensagens
cá estarei.
Chegue de onde chegar um recado-retrato
à sombra da sala em obras completas
de Júlio Dinis ou de outra família assim
já com os seus mortos e o seu prestígio
cá estarei.
Tremule onde tremular o pavilhão bandeirante
não importa o castelo sem o torreão
medieva memória terei recebendo
a dor fundíssima dos que chegam mortos
de cansaço – ou apenas cansados de tão vivos
que cá estarei.
Cá estarei
enquanto for viva a centelha rubra
o crisol aceso a sopro e cuspo de ferreiro
sem estudos de alquimista
nem de poeta hidráulico.
Cá estarei
entre convenções europeias e africanos genocídios
apto a recitar de cor historiadores suecos
e suicídios suecos
e americanas edições da Verdade segundo
Cristo nascido no Massachusets.
Cá estarei.
Cá estaremos.
Depois não
ninguém estará
para isto.
IV
Que uma onda de manteiga morna te banhe o coração
quando frio tanto fizer que nem memória de mulher
te possa acudir ou sacudir o dito receptor de micromemórias
o mais das vezes vespertinas – ou seja de meninas.
Que a alma memorial de um trecho de barragem
imagem te seja no adormecer tristonho sob a Lua
sempre que a tua vida se pareça menos com ela
do que contigo meu querido anoitecido amigo.
Estas quadras te dedico e por elas não fico
senão por leal teimosia a mais humana.
Cada dia cada manhã cada semana
mais longe estou do que me te indico.
Crisolam ramalhagens outonais seu puro ouro
sua véspera mente na breve ideia.
Nem é preciso fazer à vida cara feia
que a vida é ouro é ouro é ouro.
V
Já vigiei de uma criança o sono.
Como um homem velho dormia a menina:
a mesma perdição salva por pântanos
e mesencéfalos.
Que normais animais somos
e tecnólogos.
Em torno cercaduravam janelas
e urbanizações.
Os dias eram mais rápidos do que horas.
E não havia sequer assombrações
o mais que havia eram desoras.
Vigiei dessa menina cárpatos ominosos
estremecimentos digitais das mãozinhas.
Ainda os tenho por minutos maravilhosos
mas hoje vivo entre outras janelinhas.
VI
Estou à espera.
Sei que em Paris as pontes amanhecem por dentro.
Nunca vi isso.
Amanheço todo sozinho.
Nunca fui a Paris.
Nunca irei a Paris.
O trabalho da espera é o maior ofício da distância.
Procedo a breves passeios pela zona da luz.
O mais é coisa da sombra: casas aposentadas
tinindo dentro alumínios moribundos.
Gente que não sai às vésperas de futuro
algum.
Gente como eu – que
não escreve
nem deixa
de esperar.
VII
Senhor Jeremias
têm por nós cruzado os dias
suas armas sem fio
tudo é
senhor Jeremias
um rio
ambos bem o sabemos
que dele vivemos
e nele estamos nele nos afogamos
com altíssimos índices de sobrevivência
quão mais baixa a audiência.
Senhor Jeremias
o senhor
que é do meu tempo
sabem tão bem que dar sustento
é dar alento à mortal coisa de morrer
fora do mesmo tempo
de nascer
o senhor Jeremias
sabe.
O senhor Jeremias não sabe.
O nosso tempo não é de senhores.
O nosso tempo já não é de saber.
Têm-se por nós cruzado os dias
em vez de nós.
VIII
Hoje já não
mas já foi
de bravos rapazes
o passadiço das ruas
entre comércios
que da palavra sobreviviam
como as igrejas
de azeite viviam.
Não hoje já não
anoitece como entardecia
e cada eternidade valia um dia
e era uma árvore num pátio
a patermaternidade
da luz do dia
e comer à noite
entre mantas
como entroutro
útero.
Nunca já como hoje
não.
IX
Homens crepusculares ocupam anoiteceres de homens
e de mulheres e de memórias animais.
Falo por mim, que muito sonho com o meu cão,
um senhor amarelo que comeu em um pátio
e ardeu entre montes seu particular incêndio amarelo.
A nós, um cão é suficiente para união
de nascimento e mortes afins
ao nascimento.
Digo eu, que tive um cão
e a um cão pertenci
como a ninguém.
X
É-me a vulgar vida a mais maravilhosa coisa
até pelo empréstimo pago a crédito
da eterna dívida:
dívid’ a estrelas
à ideia de Deus
a nada enfim
sinceramente
aqui na morgue
na berçária morgue
de nossos desdentados sorrisos.
XI
Não voltarei ao convívio dos homens que falam.
Preferirei dos outros o calamento transeunte.
Gajos parecem o que aparecem mas não calam
o que ignoram dizendo nada perante
quem cala dentro o sabido afora:
obras outras de homens outros válidos
que trouxeram do silêncio minuto e hora
de suas mulheres e vidas e sólidos e líquidos.
Não, não sobrarei da fala coisa alguma
que a gente pareça coisa nenhuma.
XII
Deito à noite na cama o corpo no bosque.
A sudoeste, fulgura a jóia da água do rio.
O suave cianeto da melancolia torporiza o deitado.
Comi na cozinha sentado entre árvores.
O televisor da Lua filmava de prata móveis e fragas.
Deitei-me à cama de caruma em flanelas.
Os outros combatentes, entre vivos e mortos, ocupam
posições individuais: retratos, holopresenças arbustivas.
É muito bonita, a solidão narcótica.
A memória é uma aguardente velha: ardente água
na boca do deitado em lonas de camurça.
Víveres enlatados bibliotecam estantes brancas.
Peças de fruta pepitam fosforescências anoitecentes.
Pássaros negros pousam na barra da cama.
E o rio toca a rádio de peixes-cantores.
E o sol da manhã é possível no passado.
Elogio a jóia da água do rio: ela marulha
espumas de cristal que dão de beber às árvores,
a água sobe por dentro as árvores até dar flores,
frutos e pássaros aquíferos tremidos pelo bravio
vento alto, o vento astronáutico flamejando
diamantes de estrelas no céu do meu quarto.
Estou deitado no escuro e não escrevo e sei que
escreverei todas estas limpas máculas manchas mágoas
amanhã, como ontem, na mata que a sudoeste
fluvia o silvestre desamparo do animal urbano
em que me tornei, desertado pela infância e pelo futuro.
Deito à noite o meu corpo
fora.
XIII
Quando somos o único homem e a única mulher do mundo,
outra vez primeiros, outra vez derradeiros,
e nos torcemos como toalhas na contorcionista ginástica
do amor corporal, a cor do corpo oral fala e diz
amarelas cinzas do primeiro último amor,
águas e leites e sais e clarões de incêndio
lavrando a cama como a um pasto ígneo,
a sul os pés de unhas de cutelaria, a norte
a morte breve da expulsão de códigos e ânsias
tão por vezes solitárias no auge de céus e infernos
trazidos por cada um quando somos para que
sejamos, se ainda não do, ao menos para o outro
e a outra.
XIV
Era tudo talvez amanhã de novo
a bordo de um comboio adentro arrozais
a cabeça calma mais do que o coração
rumo a uma tarde solar numa praça branca
não contariam para nós mais
os anos descontados um a um de uma só vez
como bagos de chuva num zinco de décadas
nem as palavras não ditas em adequados crepúsculos
do amor magenta da memória paleta
o meu corpo bem lavado e bem vestido
dinheiro no bolso do lado do coração
e jornais estrangeiros na pasta de cabedal
adejando a cosmopolita liberalidade do viajante
a ti rumo.
Era já foi será nunca mais
que as vidas repetem das vidas o não-sido
não o pode-ser e assim é
de comboio ou a pé.
XV
Sangre a língua sua mínima rosa
entre dentes ricocheteça latinismos
mais livre é quem a ela preso goza
ressonâncias de bárbar’ arabismos.
Edulcor’ estremeça entidade
a glotopátria mater de filhinhos
que à mama dela mam’ a identidade
vogal em consonância de versinhos.
XVI
Matéria de rio emitimos para o mundo – e são
os nossos filhos no tempo.
Depois à noite sucede a noite – e toda a noite
lhes procuramos as vozes no escuro – como se deles
filhos fôramos,
afinal,
filhos da matéria fluvial.
XVII
Cadências dobram éreas na solidão sineira.
Almas piam, pias, corredoras de veredas.
Sossega insone a povoação inteira,
excepção minha, qu’inda corro alamedas.
Um gato espertino perto vigia
destino que não sondo comitrágico:
vê ele melhor de noite que eu de dia,
’ma coisa é ser humano, outra ser mágico.
Em torno, a pobre aldeia calcifica
seus ossos cor de casas em destroços.
Da vida toda só memória fica,
depois não fica, fica só a cor dos ossos.
Eu gosto de em tapetes outonais
marejar pés chorosos pelo chão.
Não sou perante os gatos como o cão,
nem me acorrem uivos animais.
Não. Mais uso, eu sozinho, o costume
de ter perante os sós a só doçura
de carburar por dentro o azedume
e fora me dourar de lit’ratura.
Cadências dobram éreas
etc.
XVIII
Vi-o barbeado e deitado para dormir
de fato completo – de facto, completo.
Sorria, sem ele, um mínimo de boca dele,
sob o bigode ainda não morto, afirmativo ainda.
Lembro-me disso como se amanhã fosse.
Um homem colecciona coisas de rapaz.
E um irmão morto é coisa de amanhã,
por mais insultos que nos sobrem de ontem.
Eu digo a minha vida toda aqui – menos
a minha vida toda, que toda só parece
e nunca é – excepto nos recibos das
grandes superfícies, não o mar, mas comerciais.
Digo mais: digo esta atenção atirada à sintaxe,
que a tudo ordena desde que livros houve,
assim de nós tirando a genética memória
em de uma de papel troca.
Vi a circunspecção em roda circumnavegadora,
vigorava o esquife envernizada geometria.
E nunca mais foi dia, tirando eu talvez
as mulheres nuas e as filhas nuas que delas
me brotaram em substituição nenhuma do que,
vivendo-nos, nos mata. Pode ser isto um caminho,
até em delicada ode de senhor pecto, circunspecto,
onde o coração treme primeiros colesteróis.
Vi-o barbeado e pronto, na tarde pincelada
a borracha azul com graduada cinza de
estragados licores para natais mais alguns.
Vi-o – e vejo-o ainda, como se o beijara
fora de órbita. Acontecimentos vagamente posteriores
certificaram-me sobrevivência – que só pós-vida
era, sempre e afinal, entre móveis e dentes,
retratos e palimpsestos, cacos e cacos.
Tenho saudades do gajo – e o gajo aqui.
XIX
Agora é tempo ainda intermédio.
Não consta, à cercania, algum bombismo.
Muitos são os anos de nenhum tédio.
Ser triste é um sossegado terrorismo.
Um verso, agora, há-de ser a minha vida
quando a leitura for do verso feito.
Quem caminha, caminha a direito:
e torto é escrever a coisa lida
na plen’ antecipada sorte certa.
A morte não fechou a vida aberta,
a vida não fechou a morte certa,
ser triste é um sossegado terrorismo.
XX
A minha boca é de uma língua.
Antigamente já (foi há tão poucos anos)
o meu amigo Tó tinha uma língua na boca.
Morreu de ambas, um nome técnico qualquer,
talvez cancro em ambas.
Eu digo: durmo num bosque na cama,
uma mulher é um rio,
uma mãe é o mar,
as meninas são água de água,
cá estarei.
******
Tarde a Baixo
Pouco somos à instância da luz.
Vale-nos a falsificação da memória.
Ardemos frios em a mesma glória
da consumpção mesma que conduz
cada um a seu triste pasto ominoso.
Tornam cercaduras, clarões de rosas,
os olhos bem fechados de puro gozo
das não vividas coisas maravilhosas.
É a tarde. Rua a baixo descem os peões
buscando ossos, latas, cereais.
Escusado é dar-lhes revoluções:
no mais vêem o menos, nunca o mais.
Atento à lei, o doce rapazinho
vê do comboio marejados arrozais.
Tem dentro um barco, marinheirinho,
nos olhos água, cloretos, sais.
Não conta, das gentes, a pura ânsia
que a uma varanda anseia a Lua.
Ele há no mundo muita distância
entre gente e gente e rua e rua.
******
I
Envelheço devagar no vidro do café.
Estou bem, Mãe.
O museu do meu coração não encerra às segundas-feiras.
Talvez a vida me tenha envenenado de amor, Pai.
A antiga dona do café levou as flores com ela.
Tenho a mão esquerda onde havia um vaso:
sinto a pulsação do ex-coração vegetal ainda.
Os carros na noite sangram farolins.
Estamos a beber cerveja fria na noite do café.
Os meus amigos gostam de futebol:
as almas deles usam calções.
Hoje vi uma mulher bonita em sonhos.
Ela dizia branduras a um homem a meu lado:
nunca me olhou. Eu não a odiei.
As palavras são as cadeiras das palavras mesas.
Jornais abertos como borboletas nas mesas:
a Primavera a preto-e-branco.
Tenho um rio drenando a cabeça.
Não demorarei muito, como toda a gente.
Anoiteço devagar nas galerias da manhã.
Estou bem, minha Irmã.
Volitam as folhas: das árvores, do calendário.
Sim, somos ilhas, minhas filhas.
Bruxuleia a petróleo a luz dos meus olhos.
São já animais adultos, as minhas mãos.
Quadricula-se-me a visão do mundo.
Sabe-me a boca a lápis.
E um rio é uma língua: e fala.
Drena-me a cabeça, molha-me na cama.
E a manhã e a noite resfriam ouro e prata.
E os homens sós do entardecer corvoam, negros,
desde manhã tão cedo nas ruas do comércio
a que não desaguam fregueses nem carteiros.
E o vento irrompe aplausos nas árvores,
marejando-as de invisíveis plateias.
Chego devagar a cada tarde como a uma praia.
Litoral é o coração que porto – e estrangeiro.
Saio a ver homens e animais por caminhos
que o vento talhou nas fragas vegetais.
É poderosa a minha condição – poderoso desperdício
de hélio de estrelas e de estrume temerário.
Sobrelojas de casas-de-pasto efluviam bifanas
e sovacos de mulheres oleaginosas em cozinhas.
Pasodobla a rádio intermitências sentimentais,
não longe as galerias do teatro emitem galhardetes
dramáticos, a sete e quinhentos um assento de coxia.
Uma forja de cactos enrubesce ao sol da manhã.
Assombram-se pinheiros de si mesmos, na cal.
Casais casados pastelariam sevícias mínimas:
torradas e café-com-leite, folha a folha de calendário,
atentas as veias ao colesterol da melancolia.
Em campos aguados de arroz, longe, vigora o livor
das barcarolas de cana atiçadas por meninos sós.
E eu vejo isto como se tanto cinema fosse viver.
E desejo as boas-tardes aos que de noite passam,
na noite de cada manhã.
Eu digo águas frias correndo laranjais – e decerto
nada mais do que isso seja ourives na minha vida,
a não ser ter sido tão amado em menino
por tão poderosas sombras da infante casa, onde
vigoravam a arborescência glandular da Mãe
e o museu particular do Pai, sonhos-iguanas
enfrascados em éter e décadas e décadas
de pó – e de águas frias lavando ouro
e prata e laranjas e pedras e horas.
Demorarei pouco, as mãos na cinza, nestas mãos.
Gastrópodes estrelas me surgem elas, areias de leito
patinhando convulsas, na deságua do tempo.
Isto não apresenta mal algum, terça-feira.
Berlindes entrechocam infantis cristais em adros
platinados de plátanos ondulantes ao velho vento.
Passa um homem de chapéu, talvez o poeta
Afonso Duarte, talvez um gandarês triste mais
– e sem nome, como todas as sombras de chapéu.
Não passa homem de chapéu nenhum:
escrevo um poema na praia – perante mar algum.
Recolherei, cada noite, o pão de prata do mar do sono.
Se não durmo, ausculto: pedrarias e faróis: iluminuras
de um triste monge copista de estrofes desumanas.
O que pesco – uma cara azulada num vidro de café.
Portas envidraçadas de sanatório abrem incultos declives,
onde arde a raposa sua flama ruiva, corredora.
O circunspecto coelho será mastigado – outra vez.
E uma malga de sopa sossegará o versejador, ao frio.
Que é feito das manhãs atlânticas quando
minha Mãe, fértil ainda como uma margem do Nilo,
ainda brava, adquiria legumes e peixe como um
fernão-de-magalhães claro?
Que é feito dos pincéis de meu Pai sem as mãos dele?
Agora é tarde, não de tarde.
Os cus das raparigas na pastelaria são
de cortado tangerino ébano. Distraídas,
folheiam conversas e revistas.
Pedem folhados de salmão em massa-tenra,
tasquinham mentóis edulcorantes sem travessia
de Graham Greene, quando muito (tão nada) Paulo Coelho.
Braveja na tela o idiotismo nacional de
jornalistas e depoentes, ao sabor do faz-bem
e do fascismo que toda a ignorância é.
Mas eu estou bem, Mãe.
Envelheço de lado um pouco menos que de frente,
no vidro do café sangrado de farolins,
entre cacos de cerveja e cascas de amendoins.
II
As flores cheiram como animais quietos.
Dá-lhes-nos o vento insensatas partilhas.
Termos e sentimentos decorrem obsoletos.
Acordo de noite a pensar nas filhas.
Rosas graduam a cor do perfume.
Gatos penteiam, a língua, o pêlo.
Eu sinto na cava a ânsia do cume
e mesmo sem espelho ordeno o cabelo.
De resto, cordato, vou cheirando flores.
Lojas de bifanas ondulam aromas
de fritos, cervejas e outros amores
que cheiram a flores secas em redomas.
Do tudo que a vida mais me der à míngua,
recado trarei à pátria em língua.
III
Venha de onde vier uma luz de barcos
suas caras brancas traçadas a azul
sua humana fadiga suspensa no abismo
que a horas lunares cede pratas e mensagens
cá estarei.
Chegue de onde chegar um recado-retrato
à sombra da sala em obras completas
de Júlio Dinis ou de outra família assim
já com os seus mortos e o seu prestígio
cá estarei.
Tremule onde tremular o pavilhão bandeirante
não importa o castelo sem o torreão
medieva memória terei recebendo
a dor fundíssima dos que chegam mortos
de cansaço – ou apenas cansados de tão vivos
que cá estarei.
Cá estarei
enquanto for viva a centelha rubra
o crisol aceso a sopro e cuspo de ferreiro
sem estudos de alquimista
nem de poeta hidráulico.
Cá estarei
entre convenções europeias e africanos genocídios
apto a recitar de cor historiadores suecos
e suicídios suecos
e americanas edições da Verdade segundo
Cristo nascido no Massachusets.
Cá estarei.
Cá estaremos.
Depois não
ninguém estará
para isto.
IV
Que uma onda de manteiga morna te banhe o coração
quando frio tanto fizer que nem memória de mulher
te possa acudir ou sacudir o dito receptor de micromemórias
o mais das vezes vespertinas – ou seja de meninas.
Que a alma memorial de um trecho de barragem
imagem te seja no adormecer tristonho sob a Lua
sempre que a tua vida se pareça menos com ela
do que contigo meu querido anoitecido amigo.
Estas quadras te dedico e por elas não fico
senão por leal teimosia a mais humana.
Cada dia cada manhã cada semana
mais longe estou do que me te indico.
Crisolam ramalhagens outonais seu puro ouro
sua véspera mente na breve ideia.
Nem é preciso fazer à vida cara feia
que a vida é ouro é ouro é ouro.
V
Já vigiei de uma criança o sono.
Como um homem velho dormia a menina:
a mesma perdição salva por pântanos
e mesencéfalos.
Que normais animais somos
e tecnólogos.
Em torno cercaduravam janelas
e urbanizações.
Os dias eram mais rápidos do que horas.
E não havia sequer assombrações
o mais que havia eram desoras.
Vigiei dessa menina cárpatos ominosos
estremecimentos digitais das mãozinhas.
Ainda os tenho por minutos maravilhosos
mas hoje vivo entre outras janelinhas.
VI
Estou à espera.
Sei que em Paris as pontes amanhecem por dentro.
Nunca vi isso.
Amanheço todo sozinho.
Nunca fui a Paris.
Nunca irei a Paris.
O trabalho da espera é o maior ofício da distância.
Procedo a breves passeios pela zona da luz.
O mais é coisa da sombra: casas aposentadas
tinindo dentro alumínios moribundos.
Gente que não sai às vésperas de futuro
algum.
Gente como eu – que
não escreve
nem deixa
de esperar.
VII
Senhor Jeremias
têm por nós cruzado os dias
suas armas sem fio
tudo é
senhor Jeremias
um rio
ambos bem o sabemos
que dele vivemos
e nele estamos nele nos afogamos
com altíssimos índices de sobrevivência
quão mais baixa a audiência.
Senhor Jeremias
o senhor
que é do meu tempo
sabem tão bem que dar sustento
é dar alento à mortal coisa de morrer
fora do mesmo tempo
de nascer
o senhor Jeremias
sabe.
O senhor Jeremias não sabe.
O nosso tempo não é de senhores.
O nosso tempo já não é de saber.
Têm-se por nós cruzado os dias
em vez de nós.
VIII
Hoje já não
mas já foi
de bravos rapazes
o passadiço das ruas
entre comércios
que da palavra sobreviviam
como as igrejas
de azeite viviam.
Não hoje já não
anoitece como entardecia
e cada eternidade valia um dia
e era uma árvore num pátio
a patermaternidade
da luz do dia
e comer à noite
entre mantas
como entroutro
útero.
Nunca já como hoje
não.
IX
Homens crepusculares ocupam anoiteceres de homens
e de mulheres e de memórias animais.
Falo por mim, que muito sonho com o meu cão,
um senhor amarelo que comeu em um pátio
e ardeu entre montes seu particular incêndio amarelo.
A nós, um cão é suficiente para união
de nascimento e mortes afins
ao nascimento.
Digo eu, que tive um cão
e a um cão pertenci
como a ninguém.
X
É-me a vulgar vida a mais maravilhosa coisa
até pelo empréstimo pago a crédito
da eterna dívida:
dívid’ a estrelas
à ideia de Deus
a nada enfim
sinceramente
aqui na morgue
na berçária morgue
de nossos desdentados sorrisos.
XI
Não voltarei ao convívio dos homens que falam.
Preferirei dos outros o calamento transeunte.
Gajos parecem o que aparecem mas não calam
o que ignoram dizendo nada perante
quem cala dentro o sabido afora:
obras outras de homens outros válidos
que trouxeram do silêncio minuto e hora
de suas mulheres e vidas e sólidos e líquidos.
Não, não sobrarei da fala coisa alguma
que a gente pareça coisa nenhuma.
XII
Deito à noite na cama o corpo no bosque.
A sudoeste, fulgura a jóia da água do rio.
O suave cianeto da melancolia torporiza o deitado.
Comi na cozinha sentado entre árvores.
O televisor da Lua filmava de prata móveis e fragas.
Deitei-me à cama de caruma em flanelas.
Os outros combatentes, entre vivos e mortos, ocupam
posições individuais: retratos, holopresenças arbustivas.
É muito bonita, a solidão narcótica.
A memória é uma aguardente velha: ardente água
na boca do deitado em lonas de camurça.
Víveres enlatados bibliotecam estantes brancas.
Peças de fruta pepitam fosforescências anoitecentes.
Pássaros negros pousam na barra da cama.
E o rio toca a rádio de peixes-cantores.
E o sol da manhã é possível no passado.
Elogio a jóia da água do rio: ela marulha
espumas de cristal que dão de beber às árvores,
a água sobe por dentro as árvores até dar flores,
frutos e pássaros aquíferos tremidos pelo bravio
vento alto, o vento astronáutico flamejando
diamantes de estrelas no céu do meu quarto.
Estou deitado no escuro e não escrevo e sei que
escreverei todas estas limpas máculas manchas mágoas
amanhã, como ontem, na mata que a sudoeste
fluvia o silvestre desamparo do animal urbano
em que me tornei, desertado pela infância e pelo futuro.
Deito à noite o meu corpo
fora.
XIII
Quando somos o único homem e a única mulher do mundo,
outra vez primeiros, outra vez derradeiros,
e nos torcemos como toalhas na contorcionista ginástica
do amor corporal, a cor do corpo oral fala e diz
amarelas cinzas do primeiro último amor,
águas e leites e sais e clarões de incêndio
lavrando a cama como a um pasto ígneo,
a sul os pés de unhas de cutelaria, a norte
a morte breve da expulsão de códigos e ânsias
tão por vezes solitárias no auge de céus e infernos
trazidos por cada um quando somos para que
sejamos, se ainda não do, ao menos para o outro
e a outra.
XIV
Era tudo talvez amanhã de novo
a bordo de um comboio adentro arrozais
a cabeça calma mais do que o coração
rumo a uma tarde solar numa praça branca
não contariam para nós mais
os anos descontados um a um de uma só vez
como bagos de chuva num zinco de décadas
nem as palavras não ditas em adequados crepúsculos
do amor magenta da memória paleta
o meu corpo bem lavado e bem vestido
dinheiro no bolso do lado do coração
e jornais estrangeiros na pasta de cabedal
adejando a cosmopolita liberalidade do viajante
a ti rumo.
Era já foi será nunca mais
que as vidas repetem das vidas o não-sido
não o pode-ser e assim é
de comboio ou a pé.
XV
Sangre a língua sua mínima rosa
entre dentes ricocheteça latinismos
mais livre é quem a ela preso goza
ressonâncias de bárbar’ arabismos.
Edulcor’ estremeça entidade
a glotopátria mater de filhinhos
que à mama dela mam’ a identidade
vogal em consonância de versinhos.
XVI
Matéria de rio emitimos para o mundo – e são
os nossos filhos no tempo.
Depois à noite sucede a noite – e toda a noite
lhes procuramos as vozes no escuro – como se deles
filhos fôramos,
afinal,
filhos da matéria fluvial.
XVII
Cadências dobram éreas na solidão sineira.
Almas piam, pias, corredoras de veredas.
Sossega insone a povoação inteira,
excepção minha, qu’inda corro alamedas.
Um gato espertino perto vigia
destino que não sondo comitrágico:
vê ele melhor de noite que eu de dia,
’ma coisa é ser humano, outra ser mágico.
Em torno, a pobre aldeia calcifica
seus ossos cor de casas em destroços.
Da vida toda só memória fica,
depois não fica, fica só a cor dos ossos.
Eu gosto de em tapetes outonais
marejar pés chorosos pelo chão.
Não sou perante os gatos como o cão,
nem me acorrem uivos animais.
Não. Mais uso, eu sozinho, o costume
de ter perante os sós a só doçura
de carburar por dentro o azedume
e fora me dourar de lit’ratura.
Cadências dobram éreas
etc.
XVIII
Vi-o barbeado e deitado para dormir
de fato completo – de facto, completo.
Sorria, sem ele, um mínimo de boca dele,
sob o bigode ainda não morto, afirmativo ainda.
Lembro-me disso como se amanhã fosse.
Um homem colecciona coisas de rapaz.
E um irmão morto é coisa de amanhã,
por mais insultos que nos sobrem de ontem.
Eu digo a minha vida toda aqui – menos
a minha vida toda, que toda só parece
e nunca é – excepto nos recibos das
grandes superfícies, não o mar, mas comerciais.
Digo mais: digo esta atenção atirada à sintaxe,
que a tudo ordena desde que livros houve,
assim de nós tirando a genética memória
em de uma de papel troca.
Vi a circunspecção em roda circumnavegadora,
vigorava o esquife envernizada geometria.
E nunca mais foi dia, tirando eu talvez
as mulheres nuas e as filhas nuas que delas
me brotaram em substituição nenhuma do que,
vivendo-nos, nos mata. Pode ser isto um caminho,
até em delicada ode de senhor pecto, circunspecto,
onde o coração treme primeiros colesteróis.
Vi-o barbeado e pronto, na tarde pincelada
a borracha azul com graduada cinza de
estragados licores para natais mais alguns.
Vi-o – e vejo-o ainda, como se o beijara
fora de órbita. Acontecimentos vagamente posteriores
certificaram-me sobrevivência – que só pós-vida
era, sempre e afinal, entre móveis e dentes,
retratos e palimpsestos, cacos e cacos.
Tenho saudades do gajo – e o gajo aqui.
XIX
Agora é tempo ainda intermédio.
Não consta, à cercania, algum bombismo.
Muitos são os anos de nenhum tédio.
Ser triste é um sossegado terrorismo.
Um verso, agora, há-de ser a minha vida
quando a leitura for do verso feito.
Quem caminha, caminha a direito:
e torto é escrever a coisa lida
na plen’ antecipada sorte certa.
A morte não fechou a vida aberta,
a vida não fechou a morte certa,
ser triste é um sossegado terrorismo.
XX
A minha boca é de uma língua.
Antigamente já (foi há tão poucos anos)
o meu amigo Tó tinha uma língua na boca.
Morreu de ambas, um nome técnico qualquer,
talvez cancro em ambas.
Eu digo: durmo num bosque na cama,
uma mulher é um rio,
uma mãe é o mar,
as meninas são água de água,
cá estarei.
******
Tarde a Baixo
Pouco somos à instância da luz.
Vale-nos a falsificação da memória.
Ardemos frios em a mesma glória
da consumpção mesma que conduz
cada um a seu triste pasto ominoso.
Tornam cercaduras, clarões de rosas,
os olhos bem fechados de puro gozo
das não vividas coisas maravilhosas.
É a tarde. Rua a baixo descem os peões
buscando ossos, latas, cereais.
Escusado é dar-lhes revoluções:
no mais vêem o menos, nunca o mais.
Atento à lei, o doce rapazinho
vê do comboio marejados arrozais.
Tem dentro um barco, marinheirinho,
nos olhos água, cloretos, sais.
Não conta, das gentes, a pura ânsia
que a uma varanda anseia a Lua.
Ele há no mundo muita distância
entre gente e gente e rua e rua.
******
Foto: © Sandra Bernardo – Grande Sanatório do Caramulo, 11 de Novembro de 2007
Textos: todos no Caramulo; noite de 12, manhã e tarde de 13 de Novembro de 2007 (I); tarde de 13 de Novembro de 2007 (II a XI); tarde de 14 de Novembro de 2007 (XII a XV): noite de 14 de Novembro de 2007 (XVI a XX); Tarde a Baixo (tarde de 15 de Novembro de 2007).
Textos: todos no Caramulo; noite de 12, manhã e tarde de 13 de Novembro de 2007 (I); tarde de 13 de Novembro de 2007 (II a XI); tarde de 14 de Novembro de 2007 (XII a XV): noite de 14 de Novembro de 2007 (XVI a XX); Tarde a Baixo (tarde de 15 de Novembro de 2007).
3 comentários:
Sublime!
E não há aqui qualquer benevolência minha.
Abraço
Sublime, Manel, é a Amizade: a que me dás.
un résistant (gosto mais da palavra partisan ou fidèle) "é" une personne présente.
lembro da escrita um "lego"
imdoc
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