Não deve ter sido muito antes da alba. Acordei revisitado por fotogramas dos anos 1982-84: gente de Trouxemil-Adões, a norte de Coimbra e a sul da minha vida. Fechei os olhos para receber com maiores nitidez e clarividência esses rostos tisnados pela ruralidade proletária e pelo meu afecto. O Guedes, o Saraiva, o Silvério, a Maria, a Irene – e o Raul, de quem a Irene ficou viúva tão cedo. O Farrê, o Idílio, o Aurélio, o Carlos, os Cações, o Vasco, o Acácio, o Coelho, o Crisóstomo, os dois Álvaros, o Quim. A Rosalina, o Álvaro, a Cristina, os dois Américo Branquinho, pai e filho, o senhor Manuel Claro e o pai dele, António Claro, gémeo que foi do pedrulhense Manuel Preto da minha infância, casado com a ti Maria Sol, uma alcoólica gentil e silenciosa que revi passar a caminho da taberna-mercearia-carvoaria do senhor Carlos e da senhora Eduarda a comprar, várias vezes ao dia, meios litros de tinto traçado com gasosa. Chamavam-lhe Maria Sol por ter sido tão linda na mocidade. Num ápice, a minha rua da Pedrulha (então Lameira do Saramago, hoje 1º de Maio) clareava ao fulgor triste e feliz de 1970-73 – quando tudo começou a ser eterno até pouco antes da alba de hoje, 3 de Novembro de 2007.
No périplo todo mental por aldeamentos e públicos, fui revistando os meus vários corpos e a minha insuficiência única. A janela do quarto filmava a árvore a que chamo japonesa por ignorância botânica e literária veleidade: uma silvigrafia enxuta ao vento frio na ante-alba de papel vegetal. Resisti bem às sereias da tristeza: ouvi-as sem me deixar naufragar na praia espúria da montanha.
Isto pode parecer agora literatura, mas não o era antes da alba. Era apenas um homem repassando as brasas frias de rapaz, primeiro, e de menino, depois – ao contrário da sensatez da cronologia, como é tão do gosto da memória fotogramática. Também sabia, na instante profundidade do momento, que a escrita acabaria irrompendo de tais criptas de futebóis e primeiros alcoolismos – o que agora acontece por voluntária fatalidade.
Adormeci de novo, não acordei tão cedo quanto de costume. Nada me doía. Fui à cozinha beber água, liguei o portátil, consultei o correio massivo (poesia argentina e propostas nortamericanas de enlargement do meu loló), adentrei a banheira e perfumei-me de sabão sob a chuva domesticada. Enfiei-me nas calças, atirei pão com queijo para dentro das catacumbas gástricas, tomei um café negro e coruscante como um olho bovino. Todo o sábado solar à minha frente, traspassando-me já a porosidade emocional. Como plano para o dia, o projecto simples de Viseu pela tarde, ir talvez com a cachopa ao cinema à noite a ver aquele filme da Elizabeth I contra o Resto do Mundo (ou seja, Espanha).
Há minutos: no Largo dos Castanheiros, o senhor Joaquim do táxi colhendo as castanhas públicas. O chão, cravejado de ouriços vegetais, amacia o andar. Chega ao rosto um perfume morno de pão e bolos. Crianças idiotizadas protagonizam na televisão uma infantilidade falsa. Deixo-me estar na modorra matinal, saturnina, por assim dizer feliz da vida. Penso em alguns papéis que há semanas me esperam – ou anos – na mesa uns, outros em caixas de cartão que fazem do chão do escritório um arquipélago museológico. Do televisor, escoaram a criançada obtusa e lisboneta para dar um programa de tubarões. Boas máquinas de matar, os tubarões. Mas eu preferia ver o mar vivo ao vivo. Não pode ser. Só se for em versos – e agora não estou para isso. Comprar pão, voltar para casa, pôr a panela ao lume, ir à varanda colher um ramo de salsa, olhar a Estrela no outro cabo do mundo, deixar entrar a tarde pela mais larga porta.
Caramulo, manhã de 3 de Novembro de 2007
2 comentários:
"Olhar a estrela no outro cabo do mundo"...eis o que me apetecia agora!
Bom Domingo! Um grande abraço, Daniel:)
Olá amigo. Esta é daquelas fotos para colocar em moldura... Já me tinhas falado dos teus tempos da bola e do ARGUS e assim... agora vejo aqui o craque também da bola... abraço.
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