31/03/2007

Bucoólicas

Chuva quente embebeda as aves,
fá-las depois o sol fumegar.
Riscam o céu, doidas, a cantar,
o que m’alegra e contenta, sabes?

Gosto de, manhã cedo, abrindo a janela
bolçar ao passado suas mesmas fezes.
Num só breve instante, semanas e meses
negrejam e sujam a luz amarela.

Depois a paz vazia lá vem de mansinho
(decerto devido aos neurotransmissores).
Penteiam-se as aves de pente-biquinho,
remelam-se os gatos, cruéis caçadores.

Tosse o coração a pólvora enxuta,
o estômago pede chá quente e torradas.
E há que ceder ao filho-da-puta
tiras de fiambre de fino cortadas.

Restaurado o ventre, lavados os dentes,
é sair ao sábado meteorológico.
Não poisar nas coisas olhar oncológico,
antes saudar os bichos e as gentes.

Alamed’acima, rasgando o bosquedo,
bosquejar o verso que fixe a matina.
Chegando ao café – Um café, menina! –,
fumar um cigarro sem pressa e sem medo.

Em torno, o ócio desdobra jornais.
Homens fumegantes parecem pardais,
esposas bricolam conversas banais.
Não posso do mundo querer muito mais.

É quase mei’dia, acaba a manhã.
O sol foi-se embora, já penso em sopa.
Na boca revolvo a pastilhortelã
e coço uma bolha através da roupa.

Deus ferve no céu em panela grande
a chuva que lança sobre a passarada.
É minh’alegria ’ma tal chilreada,
alegria que espero não passe e desande.

Acab’oje o mês, é abril que vem.
Amanhã é domingo, choverá ou não.
Antes d’ir p’ra casa, hei-de comprar pão
e um litro de chuva vou levar também.



Caramulo, manhã de 31 de Março de 2007

30/03/2007

Rimas Doravante Obrigatórias para os Cursos Liceais

I
De em torno a pequena boca da não-nascida
manam breves beijos por dar em flor.
Cuspos não trocados inda molham amor
a ser mantido entre nascituros, se a vida.

Vida não vem maior ou menor do não-feito.
Sacrifício é pedido entre brumas e valetas.
Estéril visão é armação de estetas,
o mais é mais ínvio quão mais direito.

Silentes responsos de sacristão algum
bronzeiam no silêncio a mesma capela.
Está bem, a vida pode até ser bela,
mas seguidos belos dias conheço nenhum

par sequer. Aqui homem, ali mulher,
mais, espectral, a comum avantesma
que quer e manda a vida mesma
contra a parede, quando quer.

De em torno a boca pequena da não-nascida,
beija em flor a morte, a morte-em-vida.



II
Se a nascida estremunha na prima solidão
e o livor da vã casa azula medos vis;
se não despertam os pais, pode a infeliz
pensar que acordar é comum condição.

Não é. Dormir é melhor contra a vida toda,
ela há-de aprender sozinha; as portas
fecham a direito mundo e ruas tortas
– quem no desdisser, quero bem que se foda.

Nascem sozinhas as nascidas, didactas
de si mesmas ao curso de tempo e rios.
Depois vêm nelas curtumes e frios
e cios e frios e rios e datas.

Comum condição: mais cimo o nariz
que a boca repele a provação,
repele a menina e a estremunhação.
É casa por casa, país por país.



III
Cogumela o leite no húmus da mulher.
Mistério nenhum: tudo explicado
pela essência em si mesma esmoler
que explica o trigo, o figo e o fado.

A coisa é assim: borbulha o vulcão
de suspeita parte a baixo a digestão.
Olha, minha filha, que o maganão
do teu pai quis fazer-te um irmão.



IV
O mais constante é preta renda sobre de mulher
branc’arnação. Modelos modelam videotelevisão
como há-de ser, como há-de não ser.
Mas não. Mulher é país, mulher é nação.

Mesmo sem rendas. Mesmo que só blusita
estampe pobreza de cromo de chita.
Nem tem, nunca tem, de ser ’ma bonita
Mulher. Não. Só tem de ser quem um homem fita.

Num baile, por exemplo. Ou um templo
de sé catedral, dia de noivado.
Tocam carrilhões acordes de fado:
a ela contemplas, contemplam, contemplo.

É essa que queres? Tens conversação?
’tão vai tu a ela. Vai, sim. Como não?



V
Babuja, pedra-giz-pomes, a nascida.
A não-nascida guarda sentimento.
Pois que isto é tudo na vida:
ou é por amor, ou é um momento.

Do mais, que não digo, diz a ’xperiência:
’tá feita, ’tá feita - ’gora, paciência.



VI
Um papel torrado é o vidro da janela
da minha casa, cada manhã, cada nova manhã.
Pássaros-cantores jubilam-me de bolhas d’ar
o vidro da janela da minha casa, cada manhã
nova.

Elástico despertar me tira da morte fingida,
levanto-me e penso logo no tão cedo que
viver é sempre.

Descalço, tremulento, já desolado e lento,
acorro à janela pintada de fresco
pelo velho pintor de cedros e pardais:
torra a manhã a partir do frio.

Os casais caiam-se sozinhos ao frio.
Rendilha-se de breve caspa a geada.
Desperto lerdo, perante tanto casario,
sia-me solitária asa cortada.

É bom nascer. Depois, nem tanto:
finanças isto, trabalho aquilo.
Mas também acontece, no entretanto,
Fazer manet’amor c’a vénus-de-milo.

(Se não for verdade a história de cama,
pensa na mãezinha, que muito te ama.)




Caramulo, tarde de 27 de Março de 2007

28/03/2007

Montanha Mágica - 8ª emissão

Quando for meia-noite (hora zero de 5ª, 29), há Montanha Mágica.

Textos de fabrico próprio e poesia de Thomas McCarthy, Joaquim Jorge Carvalho, José Ricardo Nunes e Jorge de Sousa Braga.

Música: muita e muito boa, desde o tema do genérico de Upstairs Downstairs (vulgo A Família Bellamy) a Led Zeppelin, Arcade Fire, Amélia Muge, Chet Baker, Noel Lenaghan, Aquaviva, Everything But The Girl, Linda Ronstadt, Tom Waits, Mozart (por Glenn Gould), Jorge Garcell Santana, Alberto Ribeiro, New Order, Marcos Teira, Carla Bruni, Léo Ferré, Deep Purple (vozes de David Coverdale e Glenn Hughes), Caetano Veloso, PJ Harvey, The Beatles, Catalani, Jamiroquai, Tori Amos e Jáfumega.

Em 91.2 FM e/ou www.emissoradasbeiras.com.
Das zero até cerca das duas da manhã.

27/03/2007

Mãe S'ind'É


A Mãe, viva, permite ainda isto:
març' é frio mas resiste.
Caramulo, tudo agora, noite de 27 de Março de 2007

Um e Dois





1. Do Entardecer da Ambulatória Laranjeira

Estas árvores cravadas na pedra
como nós em nós, na pedra.
Em torno, negócios, homens e mulheres:
tudo fechado.
O ar infestado de narizes.
Botijas de gás e sandes magras.
O século a vibrar como um ferro.
A vida a vibrar como um ferro.
Vitelina pátina, nas casas, a luz:
hoje.
Uma volta pela cidade, pela anestesia.
A mente: a mastigação mineral.

A vida não te escolheu: tu sim, a ela.
Um rio é uma decisão tua.
Ambulatória laranjeira, entardeces.
Desfolhas horas: desflora-las,
de facto.
Em casa apodrece a terra dos vasos,
a paciência, a ex-espera.
O homem por que trocas o rapaz,
a ferramenta que foi apenas mão
– e grácil era ela, e o rapaz.

O cio, o consumo, o carro, o coração:
hit parade quotidiano, avenidacimabaixo.
O inverno ossificado na primavera,
prateada a têmpora da recepcionista.
O homem do cartão, seu carrinho de lata.

O morango do pénis embainhado na terra ácida,
fendida, da mulher solta por quatro horas.
Chamar amor a isso, entre outras coisas.

Não acabaram o décimossegundo,
fazem a caixa hipermercante,
sonham baixinho como rãs
e coçam-se, furtivas, os sutiãs.

O mal da esperança é ser tão moral.

Às vezes, acontece que me telefonam,
vozes cancerigeradas já pelo susto,
análises só terça-feira que vem
– ou não vem.

Eu entretanto.

A árvore funda na pedra,
meu Pai em minha Mãe:
níquel e falópio,
a vida mais seu largo
espectro de acção fungicida.

A percentagem de pescadores afogados por cardume.
Os nossos pés emagrecidos como exiladas mãos.
O sorriso tabágico daquele senhor tão sozinho,
que até lhe dá para sorrir.

E a fundação da música, essa exaltação vital e
matadora, como ainda ontem à tarde,
por uma hora, na minha sala,
sozinho e tabágico.

Atrás da pensão encerrada, os cedros abertos
pelo vento. Quinquilharia de prata
calça de vidro o chão do céu,
esta noite, outra vez.

Além de pedra e árvore,
o vale simultâneo.
Seus cafèzitos rurais,
seus tractores calejados,
suas plantações aboborinas,
sua palha estrumada de
pensativas manadas,
seus mijos de velha,
seus sacudidos leites de motadolescentes,
sua portugalidade inconsequente,
seu calendário terminal.

Quando os versos não interrompem a vida,
acontece por vezes o choupo contra o céu,
tocam as aves suas cassetes voadoras,
a graça toca a duas mãos os ombros de uma pessoa.
Acontece, sim.
Enruga-se de brisa a pele do lago,
uma mansidão aligeira das mulheres
as pestanas
– e quase tudo é possível:
até que voltes.

Não.
Tira-te disso.

Que te baste o casal amigo
que acode à braseira do pátio
com enchidos a rechinar:
sê bem-vindo.

Faz, pois, os versos,
mas não todo te dês tanto a agonias:
longas são as noites e breves os dias.





2. A Bordo do Beagle, sem Deus

Dentro pulsam a perdição e as palavras.
Pátios fogacham, súbitos, clarões tintos
de ouro: e cães, acorrentados sem
culpa formada, dentro pulsam.

É a infância mais seus derredores.
Figueiras tossem pó de prata,
fulguram de acorrentados cães
em baixo, na infância.

Cheguei tarde de mais à mesma idade
desses homens que eram então velhos,
pais que eram, filhos que já não eram,
eu era, mas de mais tarde cheguei.

Agora é isto. Eu agora sei: desliza
do corpo a lágrima óssea, a unha
arqueologiza a mão toda, a mão darwínica
indicando o outrora como agora isto.

Palavras de salvação, também são
Salvas nos dias comezinhos.
Comércio de miudezas e vinhos,
homens sozinhos e graças a Deus.



Foto: Vouzela, noite 24 de Março de 2007
Textos: Caramulo, tarde de 26 de Março de 2007

26/03/2007

Quase Dois Sonetos Luxemburgueses

Um Soneto Agora

A beleza corre ainda a cara das raparigas.
Mesmo do meu espelho não está 'inda extinta.
Mãos (estrelas de osso) dizem adeus vitais.
Partem os comboios e voltam, não a recordação.

Digo isto assim agora porque envelheço.
Rápida, a consciência é trapo escarlate.
Bate, sente, regista - o olho do vate.
A beleza corre ainda a cara dos rapazes.

Tudo é tão ver(s)ificável, digo, ouço, repito.
Não sobra de meu monte uma sombra alguma.
Que eu tive já gajas e fui-lhes ao pito:
à leoa, à pantera, à coelha, à puma.

Do mais que não fiquem, descansam jardins:
e histórias e gente e coisas afins.



Outro menos um Verso

Pulcro, pequeninito, ladra contra a corrente o cão.
É um pátio de gente que vive de salário.
Breve acontece de todo o cenário a aldeia.
Passam carros, aumentam a distância.

Os mais velhos luxemburgam reformas.
Os menos velhos temem muito a diáspora.
Há mais fritos coloridos no café-estendal.
A modernidade não era isto para ser.

Eu digo - quando volto ou telefono
- que não, não era isto o Luxemburgo.

E não a vida. Nem o morrer. Sequer porém
a massa extinta das luzes que vimos
anoitecer. Sim, contra nós, pulcros, pequeninitos.



Caramulo, tarde de 25 de Março de 2007

23/03/2007

Abrir o Livro




Receio bem que o todo deste livro seja inferior à soma das suas partes. Dito isto, vamos por partes.
A parte inicial chama-se Licor, Sabão e Sapatos. É uma colecção de histórias, não mais do que isso. Alguns dos textos foram já publicados no Cronicão, em 2003. Outros viram a luz na internet e outros, ainda, em partes outras. Não são histórias da minha vida, mas histórias que a minha vida deu. É diferente, embora não seja importante. Como curiosidade, sublinho apenas que a personagem de uma das histórias se chama Camilo Ardenas. O texto nada tem a ver com um meu próximo livro, mas a figura tem: assim se chama o tipo central de um romance que ando alinhavando num universo paralelo a este(s).
A parte seguinte chama-se O Cedro e a Lua. É coisa completamente diferente no meio de tudo o que já escrevi até hoje, publicado ou não. Esse texto, sim, devo-o àquela dimensão da vida a que se chama “(auto)biografia”. Como O Cedro e a Lua tem nota prévia própria, mais aqui não adianto.
Segue-se Uma Quinta ao Fundo com Cavalos. É uma narrativa em onze momentos. Teve origem numa fotografia de 1967. Estamos a minha irmã e eu. Ela tem 23 anos. Eu tenho três. Ao fundo, onde ainda hoje é a tal quinta, já não há cavalos.
Depois, vem uma coisa talvez imperdoável. Armei-me em dramaturgo e, em coisa de duas semanas, escrevi uma peça de teatro. Chama-se O Último Dia. Espero ser perdoado por este texto, que eu tenho já perdoado também muita coisa a muita gente.
Em penúltimo lugar na estrutura deste volume, está Gente do Touro de Ouro. Tal como Cronicão e o texto final, foi publicado em 2003 em edição de autor de curta circulação. Trata-se de uma narrativa-espelho. Quero dizer: é composto de duas partes com exactos 25 parágrafos cada. Como então referi na contracapa desse livro justamente esquecido, “o primeiro parágrafo da primeira parte haverá de reflectir-se no primeiro parágrafo da segunda parte. E assim sucessivamente, até 25. O leitor experimente ver se a reflexão (essa palavra de espelho que pensa) resultou ou não”.
O texto final chama-se Noite de Homens-Cantores. Publicado em conjunto com o Cronicão e a Gente do Touro de Ouro, foi vivido e escrito no Inverno de 1998. É um texto que alia a prosa ao verso numa espécie de entrecho dramatúrgico.
Posto isto, resta tão-só o derradeiro sacrifício: a leitura propriamente dita. É minha esperança que, ao leitor, tal sacrifício resulte benigno.


Caramulo, 7 de Fevereiro de 2007

Notas:
1 - Os lançamentos do livro terão lugar, de certeza, em Pombal e Coimbra; talvez também em Leiria e Viseu. Quando tiver datas e sítios marcados, aqui vos darei conta.
2- Mais informações podem ser pedidas à editora por correio electrónico (info@imagenseletras.pt) ou correio de papel (Imagens & Letras), Rua D. Carlos I, nº 2, 2405-415 LEIRIA. O senhor Fernando Mendes é a pessoa indicada.

22/03/2007

Novidade


Sai dia 2 de Abril.
Oportunamente vos direi de lançamentos (onde e quando).
O livro já pode ser pedido à editora: Imagens & Letras.
Rua D. Carlos I, nº 2, 2405-415 LEIRIA
Amanhã vos direi mais deste livro novo.

21/03/2007

O Contador de Árvores - histª 63 do Anoitecer ao Tom Dela

para o Zé Oliveira

1
Quando era tão pequeno que o futuro me parecia a maior das coisas, gostava de encontrar nas estradas e nos montes uns homens que se curvavam para olhar por uns binóculos de tripé que eram – mas isso só muito mais tardagora o soube – de topografia. Eram senhores calados que andavam por caminhos e por montes sem serem pedintes. E eu quis logo ser um deles, mas não me lembrei de pedir isso a meu Pai.

2
Não me lembrei de pedir para ser topógrafo – e lixei-me. Ser pianista estava fora de causa: as duas mãos são necessárias, e eu tenho uma em constante amparo do coração desde que te vi passar na procissão do Senhor da Agonia. Ias vestida de azul, uma espada de prata mantilhava a hemorragia roxa do Senhor que tomou fel por nossa água, depois de tantos montes e tantos caminhos.

3
Também não fui nunca, até agora, contabilista. Contador, sim. Contabilista, não. Gostaria de me ter tornado contabilista. Os números todos ali certinhos. A lei percebida, a lápis primeiro, depois a tinta. E uma máquina de números com fita redonda de rolo, frrre-frrre, tudo ali certinho e uma vida toda ali certinha. Mas não. Sou contador.

4
Sou contador de árvores. Tornei-me contador de árvores quando adoeci para sempre. Da janela da enfermaria, subiam luas. Eu contava-as todo o dia: uma, duas, duas, uma. Eu aumentava-as: um cedro e um cipreste, outro cipreste, outro cedro. Quando me deram alta para viver alhures o restante , maravilhei-me com as árvores inumeráveis que me competia numerar. Era trabalho para toda a vida. E só com os dedos da mão esquerda, pois que a direita continua amparando o coração e a agonia.

5
Gosto muito de ouvi-las usar o vento para falar como o mar. A mesma coisa – quando o vento ergue nelas a garganta do lobo. O sol fá-las explodir de pássaros, a chuva rompe em aplausos perante elas. Até há uma série na televisão em que uma menina tem por confidente uma árvore: sim, sim, verdade!

6
No adro da igreja, a cameleira dá frutos de sangue em mesa de camilha. Passo lá as tardes de sol a respirar e a contar a camélia: uma vez muitas vezes. À noite, durmo planando sobre as lanças dos pinheiros, que manam do mar em que tornam a terra. E não posso esquecer quando fui gigante na plantação de eucaliptos: eles, a meus pés, como se eu fosse Deus. Ou, pelo menos, um homem muito grande.

7
A vida não quis que eu fosse um homem muito grande. Nem topógrafo, nem pianista. Aceito o que ela quis. Quis ela que eu fosse contador de árvores – e é o que sou: um contador de árvores. Nos incêndios de cada Verão, passo fome e frio. Quanto mais fogo, mais frio. Quanto mais frio, maior a agonia – atrás de cujo Senhor te vi passar, minha espada de prata.

8
Também nos sonhos conto árvores. Abre-se o mar de uma vez só, como um pano rápido de palco. Em cena, a calda eterna do oceano e, sobre ela, os barcos, cujos mastros são árvores inteiras e verdadeiras: barcos movidos a vento dando em laranjeiras, oliveiras, ulmeiros, tílias, pessegueiros, robles, limoeiros, pereiras. São árvores que nascem do fundo do mar, traspassam os barcos e sobem para as estrelas, que também conto para que nas mãos me nasçam os cravos roxos que te vi oferecer ao Senhor da Agonia.

9
Quando adoeci para contar árvores, estava já filmado o filme da minha vida: um menino descobridor de topógrafos que me pareciam fotógrafos-de-cavalinho-de-pau com a cabeça oculta num pano preto e um balde de líquido aos pés para que o cavalinho matasse esta sede de imagens. Sei que meu Pai me aprovaria o ofício. Ele fez o mesmo – contou árvores até morrer e até viver.

10
Agora, tenho de ir-me embora. Espero que haja árvores, lá para onde vou. De lá nascem todas, aliás. Umas para o ar, outras rumo ao níquel ardente da noz do mundo. Hei-de contar os bichos cegos que as trepam ao inverso. Hei-de contar as pedras que sonham ser cuspidas pelo fogo. Hei-de contar ao meu Pai, no reencontro, quantas árvores contei e quantas vezes – uma, duas, duas, uma.


Caramulo, tarde de 22 de Fevereiro de 2007

Caramulo - Paisagem e Povoamento (um Domingo à Noite)





Caramulo,
noite de domingo,
18 de Março de 2007

20/03/2007

Regicídio - Case Solved e outros Poemas

Os poemas de hoje à tarde, 19 de Março de 2oo7, são naturalmente, e quase cem anos depois do badagaio de chumbo que lhe deu/deram, dedicados a Sua Majestade o Rei de Portugal (que não dos Portugueses, pelos vistos), Carlos Fernando Luís Maria Vítor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon Saxe-Coburgo Gota, aka D. Carlos I



Regicídio – Case Solved

Só tens de querer ver.
O mundo começa aí.
Fio de água tece novelo de gelo.
Dia, atenção e conhecimento:
diagnose.
Jorra florcor o masturbante jardineiro.
Volve-se vulva o carniceiro.
Só tens de assistir ao teu corpo,
de ti pendente e índio como um gato.

Se outra coisa não (mais) esperas,
por para quê paciência?

Fala copiosamente do que sabes, só.
Fala só copiosamente do que sabes.
Ouçamos:

a torrenaudoscorvosdepeniche
torraltajotapimentanatural
santantóniodoscavaleirosmarinheiros
cujo sangue residua água&sal

renegasteumesmoADN
shampoopantenemedicinalcouto
o mar, garina, não é manteiga,
se queres o mar, garina, o mar eu dou-to.

Tudo de borla:
n’é m’alegria?
Mais d800 quilos de metros
de costa continental
sufragam e patrocinam
nosso belo Portugal.

Mas vê.
Mas que queiras ver.
Vê:
ainda o casinhoto de calma-colmo,
o par envilevelhecido em
Irmão Doutor Sousa Martins.
Sua adegassede, seu panivinho,
seu filho bruto, mongodoidinho.

Vê então novimagem:
filhogaragem, roque dalgum xeque ao rei,
caliás, eu sei, findou viagem
terreirodopaço (coisas queu sei)
1 de fev’reiro novecentos&8,
reposta a tiro espécie de lei.

Quem muito vai, enfim, gozar a Vila Viçosa,
‘inda é fodido por quem se goza.

E foi.



Outros Poemas

Vozes dos Animais

Na casita rés-do-chão
mora o gato e mora o cão.
Acima mas com varanda
moram Julieto e Vanda.

Não namoram, moram só.
Moram sós e lado a lado.
Uma coisa é o ladrar.
Outra coisa o miado.

Nunca Sentále

Sabitua a pele zipermercada
entralha sua mesma glandação
prendenda mesma carnação
de-si berra desesperada.

Não sentále da piça a pele
nunca nunca profabore
sabes jaquim sabes manel
cu-pénis é póamôre.

Fogueiras do Senhor João

Que a mulher serene em sua economia.
Perspectivas sobre o mesmo lhe não faltem.
Uma veneza toda sobre uma ria.
Homens que cheguem e não s’exaltem.

Que aos filhos já feitos sobre uma manta
não queira o deus-diabo prometer
que a vida nunca s’atrasa só adianta
e canta versos ‘inda por’ screver.

Trái Aguéne

Tudoisto é um ir&vir de cama-a-cama.
Quem ama sabe lá o que quem ama.
Lençóis postos de fresco denunciam
mijadas absorvidas q’arrefeciam.

(Excepto pelas Meninas)

Excepto se no escuro me prometia
uma luz nova, sei, um novo dia.
Q’assim foi, sei eu, era e seria:
noite não mais, só dia-a-dia.

Caramulo, tarde de 19 de Março de 2007

19/03/2007

Parte Tudo





A fluidez das partes previne a Totalidade.
Interdita-no-la, de facto.
Não há Todo: não há Um: não há Deus.

Somos limitados, não em relação à Totalidade,
mas às mesmas partes: (uni)versos residuais
– tudo o que podemos.

Os noivos na igrejinha da aldeia,
no viso do calor.
Ele de azul-ferrete.
Ela de branco-vitelino,
gema anémica
dada a eidetismos
e com um historial
de homens casados.

O crepúsculo de hoje não confirmou a bondade do dia.
Pôs-se um frio ósseo, desse gelo que vem de dentro.
O casaco e a camisola trabalham-me como podem.
Mas a estreia de Upstairs, Downstairs é de 1971.
E a Sagração da Primavera, de Stravinsky,
foi coreografada por Diaghilev, dirigida por Pierre Monteux
e interpretada por Nijinsky, em Paris, a 23 de Maio de 1913.

Que meteorologia seria a desse dia,
essa noite, em Paris?

Sim, já percebeste:
não há História,
só histórias.
Não, não abrasileires para “estórias”:
é história, são histórias.
Ou eidetismos.

206 ossos do corpo humano:
nem numerando totalizamos.

A própria fragmentariedade dos poemas
tal indic(i)a.
Já não é possível ir apenas ouvir fados.
O absurdo é que realiza o real.

Como nos escapa a eternidade de um fósforo?

São-nos, os olhares, lanternas:
recantos, resíduos, ropografias, remanescências e
reminiscências – recorprojectamos.

A rapariga de vestido azul no Verão do comboio.
O mar vertical do deitado na areia.
A selvajaria que cada cobardia é.
A genialidade dos zagalotes.
E a dos sacerdotes-iscariotes.
As massas geológicas do escrito.
Entre as logias, bem mais a geo
do que a antropo.
A sedimentação
(a senilidade, enfim, mas, antes,
a luz).
O estabelecimento de víveres salgados.
O lusco-fusco dos hospitais à noite.
A luz emanando vapor
e insectos de espontânea geração
contra Jöel de Rosnay.

Coçar as partes é preciso.
A oração não é precisa.

Entendo o susto católico,
esse controlo-remoto das almas,
o investimento na estupidez
e na judio-fiduciaria.
Entendo isso tudo.
Disso se tem e entretém a autarquia,
superstição nutritiva da democracia.
Ou a merda empreiteira
do golo e do tijolo.

Não, não se ama tudo.
Vamos por partes.

Mais me sabes que te sei.
Ou do que me te.
A lareira de Teixeira de Pascoaes
brunida a fraga e a Lucrécia.
Tom Joad vendo a queimarosene das laranjas,
antes do Big Deal.
Mishima e o homo-fascismo.
Yourcenar no Maine.
Nada nisto nem ninguém conta para total.
A vida não é o euromilhões.
É só totoloto.

O cu de Pasolini, o cu de Federico.
Nada é total: eu estou, mas não fico.


Texto e foto:
Caramulo,
entardenoitecer de 16 de Março de 2007

18/03/2007

Caramulo, Sábado, Noite (17.III.07)


Fado Annie

"Fado" (Annie Assouline, Bairro Alto, Lx., 1985)
© 1998 Edições 19 de Abril
Cordas da chuva travessam
a lua caída ao chão
não choro nem que mo peçam
meu sim é feito de não


Nunca mais é para sempre
menos morrer esta vida
sem fim fujo eu prà frente
já levo a morte vivida
Caramulo, tarde de 18 de Março de 2007

16/03/2007

Organização Social e Económica de Portugal – outros aspectos (mas em verso)

I. Comércio

Sem lágrimas me comovo
perante as especiosas miudezas
do comércio.
Os chocolates e as gomas, tudo
muito bem arrumado em caixas
concebidas pelos engenheiros
do consumo.
A pele terrosa do pão exposto
nas cestas.
Dentífricos e lâminas de barbear
vizinhando lápis vermelhos
na montra baixa,
de vidro.
Às vezes, saio de casa só,
só para ver estas coisas
maravilhosas.
Parecem-me ainda brinquedos
– e são brinquedos sempre.
Os pastéis são jóias.
Os sapatos ímpares
anunciam o carácter perneta
do mundo.
Paro sempre perante
uma sapataria.
E nunca perco um mercado
de peixe.
São os poemas do mar:
falam-me da vida e da morte,
da velocidade e da agonia,
do espanto e do segredo,
do tesouro e da aventura,
os peixes.
Se um merceeiro pendura
à porta
a carne salgada e fumada,
eu paro sem poder não
parar,
como quando
escrevo.
As conservas enlatadas
são milagres da compartimentação
e do génio.
Se eu pudesse arrumar os
meus versos
como as mulheres
das conserveiras arrumam as
anchovas e as cavalinhas,
a minha vida
reorganizar-se-ia
como
uma rosa
organiza
cada manhã.
Podemos amar sem desespero
estas coisas.
A garrafa vestida de prata
onde o ponche dorme suas
mil-e-uma-noites.
O coral escarchado da
garrafa de anis.
Uma ampola de menta
verdejando como certos
peitos de pássaros, incertos
olhos de mulheres.
Uma peça inteira de
fiambre
acontece toda ao mesmo tempo
como um quilo de luz.
Na boca do bacalhau
aquele
bâton de sal
que só apetece
beijar.
A fortuna amealhada,
grão a grão,
numa saca-serapilheira
de café.
Os televisores novos e
muitos,
como o futuro.
O bazar, onde
os índios e os ursos
não serão
exterminados.
O homem do tabuleiro,
com elásticos e chitas
para as senhoras,
chás e sabões
para os idosos,
cromos e berlindes
para mim.
O homem da bolacha americana,
baunilhando a asma
do mar
e
marejando-me,
finalmente,
os olhos.



II. Cidade

Salões de cabeleireiro
e do Reino de Deus
fogacham néon,
expostas as cabeças decepadas.

Paredes negras
descem do céu baixo,
trepados por inversos
ratos e cartazes de bailes.

Também o nosso olhar
é um prospecto,
mas sem data
nem hora.

Plátanos áleam,
no parque,
alamedas
de almas.

Um maneta assa
frangos vivos
num pátio
azulejado.

O comboio suburbano
chega carregado
de peixeiras
e albatrozes.

De azul aleijado
é
a alba
atroz.

Não vou
encontrar-te na
nossa cidade,
eu sei.

Uma pomada negra
à base de prata
fazia esta farmácia.
Chamava à flor das unhas o pus.

Não reverás
as ancas de viola
desta senhorita
nadelgaçada.

Não é já a dor.
Nem o dia.
Nem a noite.
Nem a anestesia.

É um ambulatório lembrar.
Uma sanguínea condição.
Um consultório p’r’arrendar.
Uma ígnea lembração.

Vai indo à frente.
A alma na boca,
seguir-te-ei
pela nossa cidade.

Tão à frente,
não.



III. Indústria

Faziam bolachas e cerveja e filhos
antes de,
de tudo,
terem sido despedidos.
São os capitães e as duquesas
da minha febril
infância
fabril.
Eram torneiros,
pintores,
serralheiros,
senhores.
Eram costureiras,
carregadoras,
bolacheiras,
senhoras.
Pasto ainda
(pastarei sempre)
esta erva
humana.
De nada me adiantou
ter-me afastado
duzentos metros,
vinte anos.
Compravam
feijão ao litro,
detergentes
que eram
pó azul
como, ao litro,
a chuva de Junho.
Conversavam nos pátios,
quando o dia
cedia
à Lua
a falua.
Subúrbios e murmúrios.
Telúricos e barbitúricos.
Pensativas reses
aos pés de um monte.
Um açougue de sonhos.
Comedores de pombos e pardais
e batatas.
Jardins de panasco requeimado.
Colectores de agrião da vala,
do espargo de Deus,
do caracol pluvial,
da silvestre amora.
Os meus operários criam
que os músicos filarmónicos
eram hologramas de altar.
Que as saias folclóricas
eram cortinados das conas.
Aos domingos,
um transístor
sportingava
a companhia da união fabril.
A chita ondulava as raparigas.
À segunda-feira,
chovia sempre.
O chumbo dobradiçava
as horas,
à segunda-feira.
Os operários
e
as operárias
desciam a rua,
subiam às fábricas,
não sabiam
que chegariam
à porra
de um poema.



IV. Fé

Não creio em Deus
e sou retribuído
pelos homens.
Creio na poesia,
que não
em poetas.
Já esperei,
mas deixei-
-me disso.



V. Serviço

Não me peças nada
porque nunca dei nada
senão flores.
Trabalhei,
como todos os homens,
em camionagem
e limpeza de
costas.
Mais não tenho.
Vou-me chegando
ao lar,
a assar
sardinhas
de pau.



VI. Escola

Thomas Bernhard, escritor cáustico-austríaco (193-1989). Fumigou o piolho católico e o percevejo nazi. E o percevejo católico e o piolho nazi.
Teixeira de Pascoaes (1877-1952 e alguns livros).
Mais João de Deus, Adelino Veiga, Tony Weare e Maria Alberta Meneres.



VII. Gente

Alguns homens são por vezes homens nenhuns.
À mesma vida roubam dignidade.
Tais não cidadaniam a cidade.
Por tal, não são jamais homens alguns.

Mais que outras, ele há certas crianças
que no jardim se perdem de lembranças.
Se breve o nascimento, como é possível
que morrer se torne verosímil?

Mulheres, às tantas, não existem
senão em filme, fotografia.
À mesma invocação resistem.
Foram-se à noite. Faltam de dia.

Quero ser velho, um só mais um.
Mas não, de todo, ser só ninguém.
Diga quem veja: olha um algum
filho de pai e pai d’alguém.



VIII. Praia

Todos vivemos na praia.
Existimos só, fora dela.
Olha um rabo-de-saia
e uma camisa amarela.

Séc’lo tal, Descobrimentos.
Pimenta e cafres, Nosso Senhor
e coisital e cofres e pimentos.
E Nª Senhora e Nº Senhor.

Portugal não é praia.
É maré negra.



IX. Engenharia

Os nossos jovens são hoje informatizados
como convém às leis-stations
que ninguém consola.
O resto é tinto e instinto.
E pontapé na bola.



X. Futuro

Caixeiras de hipermercados com anemia
e filhos adiposos, cardosos ou garcia.
Ciganos cassetando música cigana
que o sol aquece e o vento abana.
De cardioplastias, tias e cardeais,
teremos ao cento, milheiro ou mais.
Só putas brasileiras, catorze na Covilhã.
E mais outras tantas no Maracanã.
Que putas de cá, nós nunca tivemos
– pois nascemos delas e mães as dissemos.
Não creio ficar mais que o bastante,
devo na farmácia e no restaurante.
D. Afonso Henriques, Globalização?
Marrar c’um caralho, país dum cabrão.



XI. Mãe

E no entanto, Mãe, só entretanto
me é possível ser companheiro
do Grande Susto de Viver.
Sombras frias humedecem o jardim
que sobe sua mesma cor.
Os cães são cor-de-palha,
ardem sozinhos.
Também as pernas que abriste,
abriste-as à combustão espontânea
de um português aterrorizado
de ter nascido,
aqui como além.
E no entanto, Mãe.




Caramulo, noite de 15 de Março de 2007

15/03/2007

Dois Sonetólicos e Mais Esta




Sonetólicos
I
Como nem tudo pode ser sexo,
permite-me um pouco de amor.
Aceita de mim nem que seja
uma base de cerveja, por favor.
Vezes há que venho só por vir
na busca surda de falatório.
A Lua monta o promontório,
além o mar e o porvir.
Nem sempre ele é toalhetes
ou investidas da rija carnação.
Também a alma tem verdetes,
que é da humidificação.
O mais são culpas e desculpas,
próprias da catolicização.
II
Becos e vielas regredimos
em repressão de horas mortas.
Polícias mortos agredimos:
mas com que facas é que cortas?
Fados caniches nós canichamos,
leopardamos gatos magrinhos.
Eu fixo coisas que olvidamos,
como santinhas e santinhos.
Não têm conta as noites brancas,
claras manhãs não contam, não.
Que uma coisa é perdição
e outra são as mulas mancas.
Levando o Papabsolvição
ao burro para cobrição.
Mais Esta
Todo o dia existi.
Fui descoberto pela aurora.
A luz tocava árvores como a carrilhões.
Andei pela selva e vi gente.
Toquei a terra com memória marinha.
Perante um filme erótico, troquei a cara do fulano pela de um tipo que conheço. Fiz o mesmo à outra parte. Depois, lavei-me dessa turvação.
Frequentei a memória de dois homens: um foi português, o outro era austríaco. Estreei um caderno enquanto sou.
Recordei casamentos e funerais. Quase duvidei do futuro de certas recordações.
Telefonei, recebi telefonemas.
Vi uma mulher limpando uma casa. Recebi da lavandaria o meu outro casaco.
Primeiro de manhã, à noite depois, na calçada em frente à sapataria, vi como a luz tornava espelhos as pedras cegas.
Vi um rosto maravilhoso, fotografado.
À noite, estava de novo salvo pela língua. Sim, a língua das vozes que querem tornar-se vozes escritas. Esta é uma delas.
Todo o dia resisti.
Não mais.
Foto e textos: Caramulo, noite de 14 de Março de 2007

14/03/2007

Car(a)tografia

Não tem o rosto outros sinais
que os de menos e de mais.
O mais são trilhos que o vento
lev' em palavras num momento.




Caramulo, noite de 14 de Março de 2007


Por aqui conversamos ainda como se nada tivesse acontecido - e de facto, não.

Por aqui nos vemos ainda. É uma das verdades.

Isto é tanto um regresso quanto uma partida. E se alguém percebe de ambas as coisas, tu és.

É todos os momentos, nesta paz tenebrosa e construtora.

Tudo é possível e tudo foi já.

Foto: Caramulo, anoitecer de 8 de Março de 2007

Texto: Caramulo, tarde de 14 de Março de 2007

Rendimentos de Ontem

A "coisa" ontem rendeu algumas coisas. Aqui estão elas.



Op(era)ção

Tantos anos para optar pela cabeça,
que não pelo coração.
Até que enfim.



Ceptro e Bainha
- a Love Song (ou então d'Amour)

O teu amor é hoje a escada
que trepo até que a noite desça,
pelos mesmos degraus, com
passinhos de bailarina genital.

O corpo também é para isto,
não apenas para o colesterol
e as outras merdas que nos levam.

O teu amor é para levar comigo
a um pequeno-almoço de hotel,
um amor portanto opíparo
e uíquendiano.

O meu amor é diferente
por vir deste lado.
É decerto um amor,
mas olha.

O amor dos homens e das mulheres,
dos homens e dos homens,
das mulheres e das mulheres
não são um amor,
mas uma data deles.

O nosso é só um.
Tem caixa de correio.

O nosso
(o meu, pelo menos)
é mais negação
que afirmação.
Nego as pesadas borboletas
que os livros são.
Nego a minha infância
e o meu cão.
Só quero este amor
feito de refacções,
contra o pingo da torneira
que não sei reparar
e o pingo do chuveiro
em que não quero reparar.

Um homem é feito de casas-comboios
e de mulheres-apeadeiros.
As mulheres vendem bilhetes:
quartos, meios ou inteiros.
Ou tinteiros.

Quantos pais tivemos?
Quantas mães e quantos cães?
Quantos irmãos e irmães?

Chegamos hoje a qualquer lado
e tudo é paris no iorque.
Palhetam-se de grisalho
as trintonas maionésicas da imitação.
Por isso, não, o meu amor
é outra escalação.

O teu e o meu amores
coincidem por vezes no
banho e na maria,
no ponto dito do rebuçado,
entre contas da operadora telemobilista
e outros víveres que nem vêm
na lista.

Hoje a imbecilidade é uma pornografia legal.
Protejo-me dela com o meu teu amor.
Nem sempre consigo. Contigo sempre, porém.
Não é fácil explicar isto aos meus amigos.

O nosso amor lambe as próprias patas
sem pedir perdão aos manuais de etiqueta.
Não só isso lambe.

O amor é muito lindo para levar ao estrangeiro
para eles lá fora verem que nós por cá também como eles.
Um-dois-som-experiência.

É certo que viver mais é reduzir mais.
E mais.

Há gajas que não concordam nada com isto.
Os gajos querem lá saber.

O isolamento não é evitável.

Toca a Lua seus parques.
E seus cisnes de gesso.

Envelhecem as duquesas,
mirram como quadros, como míscaros,
dizem begónias,
tocam pautas de pó
para gatos incontinentes.
Vale que não és duquesa
mas minha princesa.
O nosso amor é uma monarquia sem dízimos.
Uma religião sem veludo, sem padres flatulentos.
É uma coisa com ceptro e bainha.



Décimas para Grandes Superfícies

Se te olha a mulher com dureza,
verificas a pedra no lugar da rosa.
Janelas queimam o jantar privado.
Sopas tossem olhos respiratórios.
As famílias (as mulheres) nutrem as noites.
Maravilhas começam por linguísticas.
Pequenos truques, ardis plásticos de hipermercado.
Atum quase sempre, quase nunca
uma caixa de gambas congeladas.
Nisto, a vida.

Acumulámos um amor tenso - e farinheiro.
Eu embranqueci mais do que era costume.
Experimentaste tu ciúme de 1000 e uma maneiras.
Resguardámos banha, gás e azedume.
Se eu pudesse, não agora mas antes,
teria dado a meu mesmo behaviourismo
tremor não menor que sismo
e temor do mesmo ensimesmemismo.
Para nome de morto bastaria
o próprio nome de baptismo.

Em nossas casas comungamos do feijão
a lata encarnada, farta, rotunda.
Privamos necessidades despejadas,
o odor partilhamos, de ter gentes.
Iguais a todos, de nós diferentes,
causamos sempre o velho efeito
que vem da causa de ter peito
e ter sonhado alheia coisa desigual.
Mas no fundo a nós desculpamos
culpando apenas Portugal.

A face do porco, só meio nariz.
Bacalhoa cara a mais salgada.
E uma sensação, que é boa e rara,
de no meio da vida voltar a petiz.
Ou então só os versos.
Então a demanda incessante só.
Sem metro, pureza só.
A pureza da ortolíngua, o saber
fazer o montinho de palavras
e noites.

Compramos salsichas, p'ra casa voltamos.
A cozinha estremece ao calor do fogão.
Quanto ao exaustor, nem sempre o ligamos.
São iscas, anchovas, ou sopa ou não.
Tiramos os sacos do carro parado.
Abrimos a lata (e a gata: obrigado!).
Tadita, bão sabe declinar particípio
nem votar de cor na cor-município.
Vamos e compramos e contas fazemos:
um mais uma são tudo quanto temos.



Era de Nós Antes

Na minha terra antiga está,
guardada ainda num cantinho,
uma coisa que certo não há
nem volta a haver, isso é certinho.

Era um sítio de rapazes,
canto oral de conhecer.
No falar estavam os mais audazes.
E os outros para aprender.

Duas caixas de madeira
de ananás dos Açores.
Nem hoje tenho maneira
daquilo ser tudo a cores.

Era o Beto e era o Mário
e era o Vítor e o Tonico.
Mais o Zé, o Tito e o Dário
e ainda o Coiso e o Chico.

Passou vez antes de mim
outra infância afinal?
Não começou então assim
comig' a infância em Portugal?

Era de nós antes igual
crescer, perder, sair da rua?
Vestir, fingir que não está nua
a vida toda afinal?

Que feito é dos meus meninos?
E que fiz eu p'ra me esquecer?
É dos caixotes, é dos destinos.
O ananás é p'ra vender.



Caramulo, tarde e noite de 13 de Março de 2007

13/03/2007

Uma Vida por Enquanto Simples, por Enquanto Vida

Esta é a noite.
O frio purificou-a.
Mesa negra, assente em árvores.
A minha esperança dorme.
Tenho uma ave para cear.
Tenho deitado livros.
Sou vigiado de perto pelo ano.
Dou-me bem com a minha mulher.
Já tive cães.
Calo-me à janela.
Toco as árvores com todas as mãos.
Ponho música baixinho.
Falo sozinho no parque.
Ela vem à varanda e chama-me para casa.
A minha esperança acorda e toca-me com todas as mãos.
Sentado na sala assistindo à lareira.
Em pé na cozinha descascando cebolas.
Em pé na cozinha mordendo pão e um verso.
Sei o que é dissipação.
Sei o que agonia é.
Pode o amor adoecer?
O amor pode adoecer.
O amor pode doer como um braço.
Nós vamos morrer.
O homem das bombas de gasolina.
O homem da farmácia.
O homem do gás.
A mulher da lenha.
A mulher dos ovos.
A mulher do homem do gás.
Ao Sol, o coração pulsa na cabeça.
À noite, a cabeça baixa ao coração.
O mapa alto das estrelas: esses vidros no veludo negro.
Não serei apenas vizinho do mundo.
Florirei ainda algumas vezes.
Ainda me comovo perante um rio.
Ainda sou um homem.
Toda a casa arruinada me diz respeito.
Compenso com montanhas a ausência de Deus.
À cabeceira, o copo dos dentes e os livros da língua.
A chávena de café dourada pelo lume.
O ar de museu das cadeiras.
A atenção mundial das janelas.
O casaco despido como um obituário.
As fotografias que nos olham as costas.
Lá fora, os leões condensados em gatos, patrulhando a Lua.
A lunaridade sanguínea da mulher.
O vendo tocando a placa da venda.
A quietude parecida com a felicidade.
Os órgãos fervendo o caldo da alma.
As janelas tossindo flores.
As flores secas como lábios que não beijam.
A arquitectura sibilina das facas.
A casa, as casas - e a terra culta.
Uma laranjeira faz-me passar.
Concentra-se-me o coração perante um limão.
Matam o porco, as crianças gritam.
O fumo parte-se no ar como vidro respiratório.
O tempo recolhe os homens.
As mulheres gritam-lhe.
Somos construtores de luz.
O mel e o pus contemporizam-nos.
O telefone toca no canto: ele canta.
Trememos ante o auscultador.
Um torrão embebedado de flores escarlates.
Um sábado de manhã a ver o mar.
A vida preênsil, entre margens.
O toque pessoal do vento na cara.
Os pés do meu amor no chão da cozinha.
A curiosidade do gato e a respiração do pássaro.
O televisor esperando atenção.
Furtivo, um dos retratos boceja.
A noite, tão jovem sempre, de tão fina pele.
E eu a purificá-la, friamente
e em língua de gente.



Caramulo, noite de 12 de Março de 2007

12/03/2007

Estrela

Não te será mansa
a estrela de cartolina
que, criança,
na janelescola colaste,
menina.



Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007

10/03/2007

Não Sei se Isto

Tenho lido muitos poemas
de outros homens
para poupar-me a escrever
mais.
Parece que esses homens
passam (por) coisas parecidas.
Falam de casas com mulheres
dentro
que se tornam
casas com mulheres
fora.
Tenho muita pena desses homens
para não ter pena de mim.
Não sei se isto
é inteligente,
mas cá vamos
andando.



Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007

09/03/2007

Três Apontamentos para uma Dramaturgia

1. A LITERATURA

Último obstáculo para a morte,
primeiro para a vida.



2. O PRAZO

Os que morreram jovens, jovens continuarão
até que envelheçamos de todo nós, os
a quem cabe lembração. Só então.



3. OS LEÕES

No Circo Astrolabius estão doentes os leões.
Todos os leões de todos os circos estão doentes.
Os circos - todos os circos - são doentes.



Caramulo, noite de 8 de Março de 2007

07/03/2007

SG – uma Sequência

1. Homem de Olhar Digestivo (Ventil)

Homem de olhar digestivo,
fora fixo, dentro carburando
lemas, poemas, dilemas.
Homem atravessado de pombas
como uma estátua de ar,
louco manso de café,
o guarda-chuva encostado à perna esquerda
como um pénis suplente.
O braço esquerdo paralisado por alguma dor antiga,
tratado, por delicadeza de Natália, por
Senhor João, à beira da chuva que
devagar há-de tomar
a vez do sol,
terça-feira de Carnaval.
Velho de 40 anos,
calças de bombazina cor-de-tijolo,
botas de napa, solas de borracha,
camursina cor-de-sopa-de-espinafres,
fumador lento de Ventil.
Unhas agrafadas por meias-luas pulmonares,
opiáceos de Ventil índex e médio direitos.
Magro e alto, camisa de marinheiro
que nunca viu (nem verá) o mar.

É o meu homem da tarde.
Terça-feira de Carnaval,
trabalhei um pouco de manhã,
um pouco mais depois de almoço,
deram-me o resto da tarde,
vim ver o que dava.

Deu ele.



2. Mulher Rejeitada (Filtro)

Mulher, dizem no café, que enlouqueceu de rejeição,
o amor unilateral que segue queimando-lhe a boca
é que lhe dá lume e aos sucessivos cigarros (Filtro).
Talvez menos louca que mnemónica,
melódica que harmónica,
surda que tónica.
Não sei. Não posso saber tudo.
Estou de folga, escrevo para não perder
o comboio das horas.
Olhos (os dela) que já azuis foram,
hoje escorridos como tinta não cozida
sobre azulejo.
Em torno dela, fora dela, famílias
merendam, álacres e alarves,
alheias.
É estrangeira como as árvores.
Quando se ri, as pessoas calam-se,
esperando que lhe passe.
Não tem superpoderes.
Folheia há anos a mesma edição da
Moda Noivas.
À tardinha, vai-se embora,
a cara toda borrada de azul escorrido.
Manhã cedo, regressa.
Compra quatro maços de Filtro:
azuis-escuros, como dizem,
no café, que, outrora,
seus olhos.



3. Big Brother (Gigante)

Feitas algumas contas, soma-se que nem sempre foi,
ele, amado como o deveríamos ter.
As botas e as calças puíram-lhe até a memória.
Mais meia dúzia de livros não lidos, um bloco
de apontamentos só com a primeira página
arrancada. Que desenho, de que envergadura,
terá contido?



Caramulo, tarde de 20 de Fevereiro de 2007

06/03/2007

Triplas para um Patriotismo

Músicas são zebras rápidas no rádio do carro.
Vamos aonde hoje? Troca o meu coração
numa estação de serviço. Faz-me esse favor.

Que não haja porrada na estação de serviço.
Que as pessoas não roubem chocolates,
sandes-celofanes e revistas más.

Leva-me de volta àquela casa onde nunca estive
nem fui. A estrada já foi azul. Tem paciência.
Não te trema o organismo num favor prestado.

Já não tens aliás de ter-me amado. Tens só de
levar o carro à revisão e de vigiar, em ti,
as boleias que dás. E acreditar no país.



Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007

05/03/2007

Falas do Homem Invisível

Para o Rui Cavalheiro, de apelido e de facto



Passo o século XXI nesta mesa à janela. Dois potes bojudos albergam duas plantas anónimas. Não sei se elas passam o século XXI delas a olhar para a rua, se olhando-se. Não me vêem, isso decerto.

Os outros homens doentes às outras janelas usam roupa lavada. Mas só a minha tem plantas.

Sou, pelos vistos, um dos planos de Deus. Também ele, pelos vistos, tem gavetas.

Todas as noites, ao deitar, dou pílulas ao coração, que ele recebe com o fastio e o desdém de quem, tendo comido já carne, se vê reduzido a ossos.

Não tenho memória. Tenho uma janela. Resulta o mesmo.

O médico do Lar assim para mim:
– Essa dor de cabeça, essa dor de cabeça: há quanto tempo não chora você?

Se chorasse um pouco, lembrar-me-ia talvez um pouco. O inverso já não é verdade.

Uma rosa velha ao pé de uma rosa nova: duas rosas.

A minha vida e eu, em planos separados.

A minha idade inumerável e a minha cama (14, Sala B).

Os corpos deitados no escuro do Lar. Não fazem amor, mas rumorejam como se. Amor e rumor.

À minha janela, aceitando.

Placas direccionais na rotunda: o desejo é topónimo.

Ao alto da peanha, tal uma santa a cores, a televisão é uma lareira de gelo.

Sonho caminhar dentro de água, de barco a barco. Sonho agora. Nada me restará quando acordar. Só o naufrágio.

O médico do Lar assim para mim:
– Então e sente-se melhor?
E eu:
– Melhor do que quem?

Se sou um corpo, sou, de alguma maneira, uma memória. Sou um corpo à janela.

O truque é cumprimentar à esquerda e à direita, mas olhando sempre em frente.
Por isso me medicam, talvez.

No Lar, um homem muito velho e uma mulher muito nova dizem que são namorados. Os outros riem-se e depois vêem as telenovelas todas.

As manhãs são brancas e moldáveis como gesso. Eles embotam-nos de pílulas para o dia. Quando me deixam sair, vou adentro árvores até ao café, onde a janela e os dois potes olham para mim noutra direcção.

No outro dia, talvez amanhã, eu assim para o médico do Lar:
– Estar aqui e olhar para o bosque, é como olhar para um código de barras sem dinheiro.
E o médico assim para mim:
– Mas a família não lhe tem mandado a mensalidade?

Ou a memória toda ou nenhuma. Como uma árvore, total ou invisível. Como eu faço.

Tanta gente que dá fruto sem ter dado flores.

De qualquer modo, tenho cama, mesa e roupa lavada. O coração, dispensava.

Letras brancas sobre fundo verde: EXIT.
Leio: EXISTO.
Vem o pastor da serra e lê: É XISTO.
Vem o professor da escola e lê: É ISTO.
Vem o adolescente da infância e lê: É SHIT.

Há coisas do mundo que olho que estão pintadas. Por trás do mundo, só pode ser uma parede.

Não preciso de uma coisa para sentir-lhe a falta.

Um filme pornográfico: as filhas de outros homens.

Fazemo-nos e desfazemo-nos da mesma maneira.

Caramulo, tarde de 5 de Março de 2007

Tic tic tic tic

O amor é cego.
A memória é o cão do cego.



Caramulo, noite de 7 de Fevereiro de 2007

04/03/2007

Nenhuma Gente Mais

Ábaco
Quantas vezes estes sapatos aderiram a estas pedras, a estas ruas?
Quantas vezes a inumerável vida?

Quarto I
O rapaz e a rapariga no quarto da rua Guerra Junqueiro.
Imagino.

O Terror
Quando um amor exila de um homem os livros e o trabalho – e só a mulher e a nudez da mulher e tudo o que à mulher respeite lhe interessam: eu digo que isso tem nome.

Domingo
Ao fresco frio da tarde, ao longo das pedras das ruas, as asas do nariz fremindo na poalha de água do ar. Pulmões e ideias e palavras em uníssona respiração. A extensão dominiqualidade da solidão.

Entrega
O inverno retirou cada cor de cada coisa, deixou cada coisa onde estava e acumulou as cores onde fechas os olhos para emitir todas as cores do leite.

Quatro Estações menos Três
Aos domingos à tarde, pela cidade, vejo os rapazes que fui. Querem e não querem que venha o autocarro. Duas horas no cinema e uma barra de chocolate. Grandes invernos. Longos como muros, esses invernos em que os fui.

Autocarro
Sempre esperei outra coisa.

Um Dia na Terra
Sábado de manhã, um livro de geografia, outro de Agatha Christie. Esse sábado, véspera única e vitalícia de todos estes domingos de agora.

Quarto II
Maior do que o Castelo de Moulinsart, e tão como ele fictício (afinal), o quarto da rua Guerra Junqueiro.

Não
Descubro, nunca sem espanto, que existe mais gente. Depois, isso não pode ser – e volto a acordar.

Restless Wrestling
A minha luta é só contra um.

Caramulo, tarde e depois noite de 4 de Março de 2007

ESCADAS do GATO, com CÃO ao CIMO - uma Elegia do Largo da Portagem, Coimbra, e Outros Coisos

“Só aquilo que no fim achamos ridículo é que nós dominamos.”
Thomas Bernhard, Antigos Mestres, pág. 117

Escadas do Gato, com Cão ao Cimo
(uma Elegia do Largo da Portagem, Coimbra)


Um sábado, anoitecendo, estou ao cimo de uma escadaria. Estou a olhar para baixo. Os degraus enegrecem em segundos sucessivos: o tempo desce-os. Nas minhas costas, o largo perde sangue: o sol é uma granada de groselha que já não aquece ninguém.

Posso descer, posso não descer. Ainda sou livre e ridículo: rio-me sozinho e livro-me sozinho.

Tenho dado por mim, na montanha, saudando a cidade. Se eu for à cidade, perco a montanha: como a perdi à outra, vindo para esta.

À esquerda, era o Pinto. À direita, o Correia. Zonas de sombra, ossários, capelas, tabernáculos. Mas também era, à direita como à esquerda, a minha mocidade improvável.

Tenho-me sempre deixado viver. É o meu luxo e o meu lixo. Está correcto, assim.

Fica, por vezes, a boca, grená. E não é do frio.

Não foi então nem fui.

Eu digo metais preciosos e não os possuo. Não em casa. Não nos apetrechos. Dizer é mais que possuí-los, pois que é sê-los.

Recordo sempre para a frente: amanhã não me lembrei.

Estou de frente para baixo: as escadas. Sim, o tempo.

As pessoas, rápidas: demoram tão-só oitenta anos (67, 17, 4, 24, 80).

As pessoas nas minhas costas, cor da groselha.

À minha direita, em frente à loja das máquinas de costura, onde o MRPP fez em 1974 uma vozearia que deu porrada com os comunistas oficiais, um louco manso tenta vender um bilhete da lotaria de Natal de 1973.

À minha esquerda, o Banco de Portugal dá o flanco ao Astória, que dá a cara a Santa Clara-a-Nova, que ainda olha para a Mãe, em baixo, os pés da Velha frígidos de cheias do rio com nome de cão, as sandálias todas sujas de laranjas.

Não é o fim, Jim. É só quase domingo.

Balcão em U, churrasqueira, homens desirmanados. Adivinho-os além, descendo, dando a esquerda. A breve alegria da comida, o rito da ração. Carvão vivo, frango morto: cinzas, brasas.

S. Bartolomeu; a das Cebolas; a Velha (outra); a do Comércio.

De tão ridículos, tão sérios; de tão sérios, tão ridículos – todos os nós e cada eu.

Não me importa: tenho pequeninos amores que duram muito. Gosto da churrasqueira com homens sós comendo o próprio silêncio. Gosto da fusão pombastátua. Gosto da cidade que resiste à cidade nova. O MRPP que resiste a 1975. A loja de máquinas de costura que resiste ao MRPP.

Decisões – a porra das decisões. À esquerda, em frente, atrás, à direita, lembrar, saber, esperar um pouco, escrever depois. Ser depois. Mas não é possível.

Fatos-de-macaco. De facto, macacos: os operários. Cada vez menos na cidade, os operários. A indústria foi toda para Aveiro, Marrocos, Polónia. O União, assim, não sobe.

Nem eu desço, para já.



Outros Coisos

Algum Desgosto (Masculino) Pós-Cirúrgicoplástico

Há hoje mais pessoas mansas,
o que não significa pacificadas.
A menina que tinha trancas,
tem sillymamas implantadas.

Hoje é doutros ontens feitos,
não há nisto novidade.
Mas mamar mamas, que não peitos,
eu não sei – é da idade.

O meu tempo também é este?
Mais aquele, mas enfim.
Os peitos que recebeste
são de ébanoumarfim?

É que podes ser um gajo.
E eu nesse caso não ajo.

Ruante

Não cortam já seus mesmos passos as ruas.
Dizem que não passam mas não sei se não.
Digo: dizem as ruas que não passam mas
basta atentar nos nomes que as nomeiam:
passam e passam.
Passam muito.

Ouvido de Conversa de Café

– Dez pessoas.
– Às seis horas, já lá não estava ninguém.

Caderneta

Pode ser a morte.
Pode ser, a morte.
A morte é.
A morte não pode.
A morte pode.

Solas

Se o teu sapateiro for oficial,
o caminho ainda é remendável.

Escadas

Um pouco mais.
As escadas.

Caramulo, entardenoitecer de 3 de Março de 2007

03/03/2007

Mulheres – ou Viagem a(o) outro Mundo

1. Paragem

Sonhei esta noite em ti.
Toda te debatias em mim.
Em mim e em vão:
emalhada como
um peixe branco – e eu não
te perdoava um centímetro,
uma escama.
É certo que a vida te não
permite sentires-te
maravilhosa.
Sonhei que era esse
o meu papel – e que neste
o deveria depor.
Faço-o publicamente.

Sonhei – não estávamos
doentes.
Eu tinha ido buscar-te à
saída do trabalho.
Era perto da piscina municipal.,
perto da escola industrial.
Anoitecia ao frio: tudo o que existe,
invisível embora, anoitardecia.
Mulheres gordas, sentadas
na paragem do autocarro,
esparramavam as nádegas
largas como jornais abertos.
Escorria sangue de suas
nascentes verticais.
Lembro-me de não sentir
horror: eu
esperava-te, tu virias.
Era ao contrário da
vida.

Engraçado: no acto, pareciam faltar peças.
Às vezes, eras só um olhar sob a
meda de trigo do cabelo, sob um
sol particular
que me dispensava. Eu não
fazia de galo galante. Não.
Havia delicadeza da minha parte: força
bruta caramelizada pela certeza e pela
esperança bem fundamentada.
Mas depois as pernas regressavam,
poderosas e convocadoras.

O aríete tomava-te.
Todos os homens da tua vida me
empurravam.
Seivosos, raivosos
quase, fitavam-me
esses dois cegos: os mamilos,
negros como
rosas da noite.

“O mapa dos rios do sangue” – li-te
esse verso outra vez: e desta vez
ouvias, compreendias e recebias.
De modo que o meu sonho
repunha a realidade em seu sítio.
Voltavas a ser a filha de ninguém e
a mãe de toda a gente,
com a minha especiosa ajuda.
O mapa dos rios do sangue,
as mulheres sentadas
esperando o autocarro
ao entardenoitecer.

Fumar mata. Amar também.
Ter amado, já não.
Eu apresentei-me ao acto como
ileso – por saber que sonhar é
como melhorar a memória,
mas à custa da vida.
Não estando, não és.
Deverias ser um
peixe branco de olhos furta-cores
como, dos barcos mortos, o óleo
na água.
Sonhar mata.
Sonhar queima o trigo.

Evanesceste, desvaneceste-te, adeus.
A piscina e a escola são reais,
serve-as o autocarro vazio
que pisa o sangue das mulheres
que esperam por ele,
que não por mim.



2. Verificação e Cabimento

Cabe-nos sempre uma mãe
que nunca mais foi mulher.



3. Soneto Açucarado por Ela(s)

Edulcoro todo, quando recordo o açúcar.
Amarela palha viva encimava a pessoa.
Era, como o milho, boa. Da nuca, ar
suava perlas mínimas. Flash. Na boa.

Que rica coisa, calada, despia.
Cetim coçava, se se coçava.
De noite, ela era um trecho do dia.
De dia, a mesma noite convocava.

Mas há aqui recado, algum “éffet de réel”?
Ele há: Natália, Dulce, Isabel.
Gabi, Susana, Muriel.
Íris, Ana, Valentina,
Xana, Maria, Cristina
– mas sobretudo Isabel.




Caramulo, tarde de 19 de Fevereiro de 2007

02/03/2007

Sábado

Amigos e amigas: textos voltam amanhã.
Obrigado por todo o interesse.

D.A.

Canzoada Assaltante