Homem de olhar digestivo,
fora fixo, dentro carburando
lemas, poemas, dilemas.
Homem atravessado de pombas
como uma estátua de ar,
louco manso de café,
o guarda-chuva encostado à perna esquerda
como um pénis suplente.
O braço esquerdo paralisado por alguma dor antiga,
tratado, por delicadeza de Natália, por
Senhor João, à beira da chuva que
devagar há-de tomar
a vez do sol,
terça-feira de Carnaval.
Velho de 40 anos,
calças de bombazina cor-de-tijolo,
botas de napa, solas de borracha,
camursina cor-de-sopa-de-espinafres,
fumador lento de Ventil.
Unhas agrafadas por meias-luas pulmonares,
opiáceos de Ventil índex e médio direitos.
Magro e alto, camisa de marinheiro
que nunca viu (nem verá) o mar.
É o meu homem da tarde.
Terça-feira de Carnaval,
trabalhei um pouco de manhã,
um pouco mais depois de almoço,
deram-me o resto da tarde,
vim ver o que dava.
Deu ele.
2. Mulher Rejeitada (Filtro)
Mulher, dizem no café, que enlouqueceu de rejeição,
o amor unilateral que segue queimando-lhe a boca
é que lhe dá lume e aos sucessivos cigarros (Filtro).
Talvez menos louca que mnemónica,
melódica que harmónica,
surda que tónica.
Não sei. Não posso saber tudo.
Estou de folga, escrevo para não perder
o comboio das horas.
Olhos (os dela) que já azuis foram,
hoje escorridos como tinta não cozida
sobre azulejo.
Em torno dela, fora dela, famílias
merendam, álacres e alarves,
alheias.
É estrangeira como as árvores.
Quando se ri, as pessoas calam-se,
esperando que lhe passe.
Não tem superpoderes.
Folheia há anos a mesma edição da
Moda Noivas.
À tardinha, vai-se embora,
a cara toda borrada de azul escorrido.
Manhã cedo, regressa.
Compra quatro maços de Filtro:
azuis-escuros, como dizem,
no café, que, outrora,
seus olhos.
3. Big Brother (Gigante)
Feitas algumas contas, soma-se que nem sempre foi,
ele, amado como o deveríamos ter.
As botas e as calças puíram-lhe até a memória.
Mais meia dúzia de livros não lidos, um bloco
de apontamentos só com a primeira página
arrancada. Que desenho, de que envergadura,
terá contido?
Caramulo, tarde de 20 de Fevereiro de 2007
1 comentário:
É mesmo isso o que observamos...assim. Sem mais.
Enviar um comentário