13/03/2007

Uma Vida por Enquanto Simples, por Enquanto Vida

Esta é a noite.
O frio purificou-a.
Mesa negra, assente em árvores.
A minha esperança dorme.
Tenho uma ave para cear.
Tenho deitado livros.
Sou vigiado de perto pelo ano.
Dou-me bem com a minha mulher.
Já tive cães.
Calo-me à janela.
Toco as árvores com todas as mãos.
Ponho música baixinho.
Falo sozinho no parque.
Ela vem à varanda e chama-me para casa.
A minha esperança acorda e toca-me com todas as mãos.
Sentado na sala assistindo à lareira.
Em pé na cozinha descascando cebolas.
Em pé na cozinha mordendo pão e um verso.
Sei o que é dissipação.
Sei o que agonia é.
Pode o amor adoecer?
O amor pode adoecer.
O amor pode doer como um braço.
Nós vamos morrer.
O homem das bombas de gasolina.
O homem da farmácia.
O homem do gás.
A mulher da lenha.
A mulher dos ovos.
A mulher do homem do gás.
Ao Sol, o coração pulsa na cabeça.
À noite, a cabeça baixa ao coração.
O mapa alto das estrelas: esses vidros no veludo negro.
Não serei apenas vizinho do mundo.
Florirei ainda algumas vezes.
Ainda me comovo perante um rio.
Ainda sou um homem.
Toda a casa arruinada me diz respeito.
Compenso com montanhas a ausência de Deus.
À cabeceira, o copo dos dentes e os livros da língua.
A chávena de café dourada pelo lume.
O ar de museu das cadeiras.
A atenção mundial das janelas.
O casaco despido como um obituário.
As fotografias que nos olham as costas.
Lá fora, os leões condensados em gatos, patrulhando a Lua.
A lunaridade sanguínea da mulher.
O vendo tocando a placa da venda.
A quietude parecida com a felicidade.
Os órgãos fervendo o caldo da alma.
As janelas tossindo flores.
As flores secas como lábios que não beijam.
A arquitectura sibilina das facas.
A casa, as casas - e a terra culta.
Uma laranjeira faz-me passar.
Concentra-se-me o coração perante um limão.
Matam o porco, as crianças gritam.
O fumo parte-se no ar como vidro respiratório.
O tempo recolhe os homens.
As mulheres gritam-lhe.
Somos construtores de luz.
O mel e o pus contemporizam-nos.
O telefone toca no canto: ele canta.
Trememos ante o auscultador.
Um torrão embebedado de flores escarlates.
Um sábado de manhã a ver o mar.
A vida preênsil, entre margens.
O toque pessoal do vento na cara.
Os pés do meu amor no chão da cozinha.
A curiosidade do gato e a respiração do pássaro.
O televisor esperando atenção.
Furtivo, um dos retratos boceja.
A noite, tão jovem sempre, de tão fina pele.
E eu a purificá-la, friamente
e em língua de gente.



Caramulo, noite de 12 de Março de 2007

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