Para o Rui Cavalheiro, de apelido e de facto
Passo o século XXI nesta mesa à janela. Dois potes bojudos albergam duas plantas anónimas. Não sei se elas passam o século XXI delas a olhar para a rua, se olhando-se. Não me vêem, isso decerto.
Os outros homens doentes às outras janelas usam roupa lavada. Mas só a minha tem plantas.
Sou, pelos vistos, um dos planos de Deus. Também ele, pelos vistos, tem gavetas.
Todas as noites, ao deitar, dou pílulas ao coração, que ele recebe com o fastio e o desdém de quem, tendo comido já carne, se vê reduzido a ossos.
Não tenho memória. Tenho uma janela. Resulta o mesmo.
O médico do Lar assim para mim:
– Essa dor de cabeça, essa dor de cabeça: há quanto tempo não chora você?
Se chorasse um pouco, lembrar-me-ia talvez um pouco. O inverso já não é verdade.
Uma rosa velha ao pé de uma rosa nova: duas rosas.
A minha vida e eu, em planos separados.
A minha idade inumerável e a minha cama (14, Sala B).
Os corpos deitados no escuro do Lar. Não fazem amor, mas rumorejam como se. Amor e rumor.
À minha janela, aceitando.
Placas direccionais na rotunda: o desejo é topónimo.
Ao alto da peanha, tal uma santa a cores, a televisão é uma lareira de gelo.
Sonho caminhar dentro de água, de barco a barco. Sonho agora. Nada me restará quando acordar. Só o naufrágio.
O médico do Lar assim para mim:
– Então e sente-se melhor?
E eu:
– Melhor do que quem?
Se sou um corpo, sou, de alguma maneira, uma memória. Sou um corpo à janela.
O truque é cumprimentar à esquerda e à direita, mas olhando sempre em frente.
Por isso me medicam, talvez.
No Lar, um homem muito velho e uma mulher muito nova dizem que são namorados. Os outros riem-se e depois vêem as telenovelas todas.
As manhãs são brancas e moldáveis como gesso. Eles embotam-nos de pílulas para o dia. Quando me deixam sair, vou adentro árvores até ao café, onde a janela e os dois potes olham para mim noutra direcção.
No outro dia, talvez amanhã, eu assim para o médico do Lar:
– Estar aqui e olhar para o bosque, é como olhar para um código de barras sem dinheiro.
E o médico assim para mim:
– Mas a família não lhe tem mandado a mensalidade?
Ou a memória toda ou nenhuma. Como uma árvore, total ou invisível. Como eu faço.
Tanta gente que dá fruto sem ter dado flores.
De qualquer modo, tenho cama, mesa e roupa lavada. O coração, dispensava.
Letras brancas sobre fundo verde: EXIT.
Leio: EXISTO.
Vem o pastor da serra e lê: É XISTO.
Vem o professor da escola e lê: É ISTO.
Vem o adolescente da infância e lê: É SHIT.
Há coisas do mundo que olho que estão pintadas. Por trás do mundo, só pode ser uma parede.
Não preciso de uma coisa para sentir-lhe a falta.
Um filme pornográfico: as filhas de outros homens.
Fazemo-nos e desfazemo-nos da mesma maneira.
Os outros homens doentes às outras janelas usam roupa lavada. Mas só a minha tem plantas.
Sou, pelos vistos, um dos planos de Deus. Também ele, pelos vistos, tem gavetas.
Todas as noites, ao deitar, dou pílulas ao coração, que ele recebe com o fastio e o desdém de quem, tendo comido já carne, se vê reduzido a ossos.
Não tenho memória. Tenho uma janela. Resulta o mesmo.
O médico do Lar assim para mim:
– Essa dor de cabeça, essa dor de cabeça: há quanto tempo não chora você?
Se chorasse um pouco, lembrar-me-ia talvez um pouco. O inverso já não é verdade.
Uma rosa velha ao pé de uma rosa nova: duas rosas.
A minha vida e eu, em planos separados.
A minha idade inumerável e a minha cama (14, Sala B).
Os corpos deitados no escuro do Lar. Não fazem amor, mas rumorejam como se. Amor e rumor.
À minha janela, aceitando.
Placas direccionais na rotunda: o desejo é topónimo.
Ao alto da peanha, tal uma santa a cores, a televisão é uma lareira de gelo.
Sonho caminhar dentro de água, de barco a barco. Sonho agora. Nada me restará quando acordar. Só o naufrágio.
O médico do Lar assim para mim:
– Então e sente-se melhor?
E eu:
– Melhor do que quem?
Se sou um corpo, sou, de alguma maneira, uma memória. Sou um corpo à janela.
O truque é cumprimentar à esquerda e à direita, mas olhando sempre em frente.
Por isso me medicam, talvez.
No Lar, um homem muito velho e uma mulher muito nova dizem que são namorados. Os outros riem-se e depois vêem as telenovelas todas.
As manhãs são brancas e moldáveis como gesso. Eles embotam-nos de pílulas para o dia. Quando me deixam sair, vou adentro árvores até ao café, onde a janela e os dois potes olham para mim noutra direcção.
No outro dia, talvez amanhã, eu assim para o médico do Lar:
– Estar aqui e olhar para o bosque, é como olhar para um código de barras sem dinheiro.
E o médico assim para mim:
– Mas a família não lhe tem mandado a mensalidade?
Ou a memória toda ou nenhuma. Como uma árvore, total ou invisível. Como eu faço.
Tanta gente que dá fruto sem ter dado flores.
De qualquer modo, tenho cama, mesa e roupa lavada. O coração, dispensava.
Letras brancas sobre fundo verde: EXIT.
Leio: EXISTO.
Vem o pastor da serra e lê: É XISTO.
Vem o professor da escola e lê: É ISTO.
Vem o adolescente da infância e lê: É SHIT.
Há coisas do mundo que olho que estão pintadas. Por trás do mundo, só pode ser uma parede.
Não preciso de uma coisa para sentir-lhe a falta.
Um filme pornográfico: as filhas de outros homens.
Fazemo-nos e desfazemo-nos da mesma maneira.
Caramulo, tarde de 5 de Março de 2007
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