Se o meu corpo tem memória, és a alegria póstuma dele.
O amor pode morrer, não o ter amado.
Não cederei à evidência trágica dos livros: fundamentá-la-ei, antes.
Isto é um modo de vida.
Amo-te mas fez-se noite.
Olho em volta: vejo homens assustados, acossados pela magreza luminotécnica dos cafés.
As mulheres em casa, grávidas, fazendo mais sopa.
O rumor terrível da aldeia: as vidas engaioladas, as vidas cheias de arames, móveis coxos, cascas de laranja, baldes sujos.
Não cederei ao terror do amor: elegiá-lo-ei, antes.
Estou agora muito mais vivo.
Tu também.
Estou agora muito mais entregue ao meu ofício – como um peixe à natação.
Na noite muito escura e pura, conheço o limoeiro, o poço fundo, o vento mineral.
Isto é tudo verdade.
Eu derivo.
Tenho um coração de cortiça.
Tenho uma alma neurotransmissora.
Num hotel da cidade do Porto, certo outubro, sentei-me a ouvir o pianista.
A música acontecia tão materialmente quanto uma pessoa ou um vaso com flores.
Figuras-Hopper tomavam cálices doces ao balcão.
Eu estava em serenidade.
Suponho que estava vivo, apesar de ti.
Depois, gerou-se a confusão.
Digo: o hotel evanesceu, conheci uma mulher, as luzes públicas sucediam-se sem respirar na berma da estrada.
O tempo mexeu as barbatanas.
Os dentes tiveram frio.
Um ventre chupava o outro, ultimatava-o de licor de leite.
Oh sim, eu fiz por sobreviver, claro que sim!
Exaurido, eterno, pessoal como uma rosa genética, abandonei o carro a tremer de calor.
Havia em frente uma parede onde tinham escrito uma obscenidade anarca.
Puxei as calças para cima.
Tartamudeei dois passos laterais.
A porta da sacristia estava aberta, alguém lá dentro remuneraria o padre.
Desci uma viela íngreme.
Fritavam toucinho algures, o perfume inquietava-me a mim e aos cães acorrentados em pátios submersos.
Talvez eu não mereça tanta beleza, sabes?
Estou como quem não quer a coisa, e vai daí um cinzeiro, um portão encarnado, uma unha roída, um aniversário infantil – tudo me comove tanto, Pai.
Foi para isto que me fizeste.
O amor pode morrer, não o ter amado.
Não cederei à evidência trágica dos livros: fundamentá-la-ei, antes.
Isto é um modo de vida.
Amo-te mas fez-se noite.
Olho em volta: vejo homens assustados, acossados pela magreza luminotécnica dos cafés.
As mulheres em casa, grávidas, fazendo mais sopa.
O rumor terrível da aldeia: as vidas engaioladas, as vidas cheias de arames, móveis coxos, cascas de laranja, baldes sujos.
Não cederei ao terror do amor: elegiá-lo-ei, antes.
Estou agora muito mais vivo.
Tu também.
Estou agora muito mais entregue ao meu ofício – como um peixe à natação.
Na noite muito escura e pura, conheço o limoeiro, o poço fundo, o vento mineral.
Isto é tudo verdade.
Eu derivo.
Tenho um coração de cortiça.
Tenho uma alma neurotransmissora.
Num hotel da cidade do Porto, certo outubro, sentei-me a ouvir o pianista.
A música acontecia tão materialmente quanto uma pessoa ou um vaso com flores.
Figuras-Hopper tomavam cálices doces ao balcão.
Eu estava em serenidade.
Suponho que estava vivo, apesar de ti.
Depois, gerou-se a confusão.
Digo: o hotel evanesceu, conheci uma mulher, as luzes públicas sucediam-se sem respirar na berma da estrada.
O tempo mexeu as barbatanas.
Os dentes tiveram frio.
Um ventre chupava o outro, ultimatava-o de licor de leite.
Oh sim, eu fiz por sobreviver, claro que sim!
Exaurido, eterno, pessoal como uma rosa genética, abandonei o carro a tremer de calor.
Havia em frente uma parede onde tinham escrito uma obscenidade anarca.
Puxei as calças para cima.
Tartamudeei dois passos laterais.
A porta da sacristia estava aberta, alguém lá dentro remuneraria o padre.
Desci uma viela íngreme.
Fritavam toucinho algures, o perfume inquietava-me a mim e aos cães acorrentados em pátios submersos.
Talvez eu não mereça tanta beleza, sabes?
Estou como quem não quer a coisa, e vai daí um cinzeiro, um portão encarnado, uma unha roída, um aniversário infantil – tudo me comove tanto, Pai.
Foi para isto que me fizeste.
Caramulo, manhã de 24 de Maio de 2006
2 comentários:
Identifico-me sorrindo... mas sempre que te leio espanto-me. Desta vez... emocionei-me... outra forma de expressar o meu sorriso.
Emociono-me e nao sei se sorrio ou choro.
De madrugada leio-te repetidamente com ganas de guardar-te para sempre na memoria.
Que loucura este texto!!! Como se pode dizer que uma imagem vale mais do que mil palavras?
Desde aqui te abraco.
Beijos mil
Ilda
Buenos Aires
Enviar um comentário