Cada dia tem o seu outono.
Esmorece a luz, a luz tem sono.
Boa hora para ir buscar um amor
- pode ser um filho, pode ser um cão (mesmo sem dono).
Quando em Lisboa, acontecia
eu ir ver passar os carros regressando
aos dormitórios de fim de dia
- tristes carneiros: seguindo, parando...
Sempre m'assim foi. Assim será
mais sempre, suponho. E todavia
acordo cedo, sabendo já
que outono não há sem invernia.
Quem diria... O meu Pai, tão brincalhão,
tinha por fé (com muita razão)
que amar um filho é com'amar um cão.
Hoje o entendo, duas filhas depois:
são de olhos tão mansos quão mansos os bois.
Quão manso de hoje o outono! (Mas é primavera.
Vou deitar-me cedo. O verão já me espera.)
2
Nasci como os outros: não faço diferença.
Nascer é bem menos de quanto se pensa.
Morrer não é tanto que se não aceite
qual sono em sossego e puro deleite.
Viver é diferente: é (todos os dias)
ser eu e ser gente sem mais demasias.
Tem isto um truque? Um truque isto tem:
foi chegar-se o pai tão perto da mãe.
3
Era o tempo das rosas. Maria
saindo à rua sentiu comoção:
palavras fugidas da pele do papel
andavam (as tontas!) nuas pelo chão.
A palavra "rosa". A palavra "sim".
Palavras, palavras - que não tinham fim.
A palavra "espera". E outra, enfim,
jurava que ela era só p'ra mim.
Compôs ao pescoço o lenço correcto.
De chita, o vestido (seu tanto obsoleto)
traía a pobreza que a pobre vestia.
Qual outra palavra? Como só p'ra mim?
Eu só disse: "Espera!". Eu só disse assim:
"Era o tempo das rosas. Maria..."
Caramulo, tarde de 25 de Maio de 2006
1 comentário:
Lindo. A este ritmo... temos "O Tempo dos Sorrisos".
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