15/05/2006

José

Os olhos azuis do meu avô paterno apagaram-se 34 anos antes de eu nascer.Sei que eram azuis por crónicas de família. A única fotografia que se conserva dele é toda cinza. Ainda assim, os olhos desse homem improvável ardem de claridade por cima de um bigode viril e secular. Era um homem múltiplo: conduzia eléctricos, amanhava a terra, enxertava árvores e fazia ele mesmo a roupa aos muitos filhos. Levou-o a tuberculose de 1930. Fez muita falta. Para sustentar aquele rancho todo, a minha avó foi vendendo, retalho a retalho, as terras que ele tinha ido comprando. Foram anos negros, depressivos, fundos como poços sem água. O meu pai falava do pai dele com uma veneração comovente. Eu gostava desse espectáculo: o meu pai a ser filho. A cor azul não chegou a mim. Tenho vulgares olhos castanhos de pardal português. Não sei enxertar árvores, já não há eléctricos, compro a hortaliça e nada sei de alfaiataria. Só sei que, por causa de meu pai, admiro e gosto de um homem que não conheci, um homem que me olha de azul do meio de um clarão cinza.



escrito na Figueira da Foz, 24 de Abril de 2006
publicado n'O ECO (ed. 2770, 27 de Abril de 2006, ou www.oeco.pt)

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu li pouco na vida. Li, sim senhor. Li nada. Aqui e ali um livro. Mas aqui sinto que aqui leio, em rigor, tudo o que ali, na vida, é preciso que seja lido. Aqui.

Daniel Abrunheiro disse...

obrigado, profundamente.

Canzoada Assaltante