29/05/2006

Deve Ser Cedo a Noite Porque Antes Faz-se Tarde

Estes dias, estes dias.
Calor e claridade. Mais papel e mais luz: Phyllis Bentley, Colin Wilson, John Osborne, Alan Sillitoe. Não só. Também Ian Brady, o assassino dos Moors, Inglaterra.
Visão, beleza e desfaçatez do Mundo.
O homem muito velho consultando um mapa de Portugal na esplanada do Avenida, Caramulo.
Estas palavras escritas a caneta verde sobre mesa redonda, de ferro, azul (o mesmo azul do caderno de que me servi para anotar António Sérgio, Ensaios-I, há 25 anos).
Estas coisas que ficam: uma cor ou duas.
O meu cão amarelo.
Uma dulcíssima fadiga.
Deus nenhures.
Só homens e mulheres formigando, alguma motorizada, carros a gasóleo.
Dois pardais. Um, com uma estrela de palha na boca. O outro, sem estrela.
O homem velho, a dois metros de esplanada, diz-me:
- Não fumo há mais de 25 anos.
Digo-lhe:
- O senhor é que tem juízo.
Eu fumo. Fumo devagar, passa das sete e meia da tarde, uma brisa tecla, uma a uma, as folhas dos plátanos.
Tenho um mau livro de poesia (ou um livro de poesia má) para acabar de ler. Preciso de ler também coisas más - para ver como se não deve fazer.
Depois de almoço, hoje, vi um homem praticando verbos: cambalear, tartamudear, exacerbar, perder, lembrar, beber. Era um bêbado-todos-os-dias. Esgazeou, também. Quando me levantei para ir pagar ao balcão, disse-me:
- Eu tive um rádio de altas frequências.
Eu não disse nada. Ele disse:
- E uma máquina de escrever.
E pôs-se a fazer com a mão direita gestos de caneta. Depois corrigiu-se e usou as duas mãos para fazer como a brisa às folhas dos plátanos.



Caramulo, tarde de 29 de Maio de 2006

2 comentários:

Anónimo disse...

- O senhor é que tem juízo.
Sorriso... duplo.

Anónimo disse...

Passo muito tempo sem entrar no teu canil propositadamente, para
nao me perder no deslumbramento da tua escrita, que està cada vez melhor. Mas sempre que aqui venho acabo por me encontrar na saudade da doce melancolia do Caramulo.
Abraca por mim o Caramulo e diz-lhe que em breve voltarei.
Beijos mil
Ilda
Buenos Aires

Canzoada Assaltante