Numa tarde embaciada como uma janela de inverno, ele teve momentos felizes. Tinha entrado num estabelecimento mínimo chamado "Esconderijo". As paredes, forradas de meias ripas redondas de pinho, eram cravejadas de penduricalhos de louça e de papel, entre pratos com dizeres populares e anúncios de bailes. Três mulheres casadas palravam agudamente. Uma criança invisível gritava nalgum pátio interior. Uma gata estendia num cesto uma sesta nédia. Pediu uma caneca de café e um bolo de canela. Merendou sem infelicidade, encalmado pela beberagem chilra. Enquanto tasquinhava o biscoito, mirou o boneco do queres-fiado-toma, sorrindo por dentro à justiça do manguito. A criança invisível materializou-se à entrada da tasca com uma bola na mão e um sorriso, a que faltava um dente, na boca. Parecia um sapo ruço. As mulheres meteram-se com o miúdo. Deram-lhe um caramelo espanhol.
Lá fora, havia um jardim público muito grande. O arvoredo antigo presidia à decência geométrica dos canteiros. Bancos de pedra sem espaldar arrefeciam à espera de ninguém, na tarde de grés. Algum carro raro subia a esforço a calçada.
Pediu um conhaque nacional e aceitou a memória instantânea da felicidade. As mulheres saíram, ele ficou-se. O miúdo da bola teve de sentar-se à mesa da entrada. A mãe trouxe-lhe um iogurte e um pão com fiambre. Outra criança entrou. Era mais velha e irmã do jogador. Também foi servida de iogurte, mas preferiu queijo no pão.
No mostrador, um prato de carapaus envinagrava de cebola emurchecida o olhar e as moscas. Ao lado dos peixes, um naco de presunto amarelejava sem saída. Outro pires sustentava uma mancha de queijo. O ar, suculento, merceava um compósito de café, petiscos e sabão. Três mesas, na sala exígua, amparavam dezasseis cadeiras. O calendário da parede demorava-se em abril, mas maio já era. Caixas de papelão, inchadas de botelhas de água mineral, geometrizavam ao canto direito da entrada, nas costas do menino. Os cinzeiros eram conchas de baquelite que lhe lembraram mãos de dedos colados, infantis e tóxicas. Uma balança das antigas pontificava no segundo balcão, em cujo mostrador vivia o silêncio grená de um presunto. Ele foi coleccionando as coisas pelo lado da emoção, agradecendo a hora.
A senhora informou-o de que o lavabo se situava no exterior. Era um cubículo esconso. Dentro, uma cagadeira turca, igual às das escolas primárias salazaristas, convidava ao agachamento cócoro. Urinou do alto, acertando no sumidouro com garbo e pressão. Regressou ao "Esconderijo" com antecipações felizes.
Tinha entrado uma velha enxuta. Pela autoridade, supô-la com acerto mãe da patroa. A mulher estendia uma voz metálica que vibrava nas tampas mal enroscadas dos boiões de amendoins. Falaram de mortos e de política municipal. Ele escutou, deliciado com a desimportância da vida. Apreciou o estanho da garrafa de ponche, em cujo rótulo se coloria uma sensualidade de mil-e-uma-noites. Havia toda uma existência de vinhos abafados, portos, madeiras, espumantes, brandes-mel, licores de coco, tangerina e noz. E medronheiras.
Para mais, tinha os pés quentes, favorecidos pela regularidade da digestão e a paz de espírito. Não longe do "Esconderijo", o cume da montanha era um nariz frio juncado de pêlos vegetais. No vale, os casarios fumavam por chaminés rupestres. Depois, teria de sair, regressar, matricular-se naquilo a que, à falta de melhor esconderijo, chamamos "realidade".
Lá fora, havia um jardim público muito grande. O arvoredo antigo presidia à decência geométrica dos canteiros. Bancos de pedra sem espaldar arrefeciam à espera de ninguém, na tarde de grés. Algum carro raro subia a esforço a calçada.
Pediu um conhaque nacional e aceitou a memória instantânea da felicidade. As mulheres saíram, ele ficou-se. O miúdo da bola teve de sentar-se à mesa da entrada. A mãe trouxe-lhe um iogurte e um pão com fiambre. Outra criança entrou. Era mais velha e irmã do jogador. Também foi servida de iogurte, mas preferiu queijo no pão.
No mostrador, um prato de carapaus envinagrava de cebola emurchecida o olhar e as moscas. Ao lado dos peixes, um naco de presunto amarelejava sem saída. Outro pires sustentava uma mancha de queijo. O ar, suculento, merceava um compósito de café, petiscos e sabão. Três mesas, na sala exígua, amparavam dezasseis cadeiras. O calendário da parede demorava-se em abril, mas maio já era. Caixas de papelão, inchadas de botelhas de água mineral, geometrizavam ao canto direito da entrada, nas costas do menino. Os cinzeiros eram conchas de baquelite que lhe lembraram mãos de dedos colados, infantis e tóxicas. Uma balança das antigas pontificava no segundo balcão, em cujo mostrador vivia o silêncio grená de um presunto. Ele foi coleccionando as coisas pelo lado da emoção, agradecendo a hora.
A senhora informou-o de que o lavabo se situava no exterior. Era um cubículo esconso. Dentro, uma cagadeira turca, igual às das escolas primárias salazaristas, convidava ao agachamento cócoro. Urinou do alto, acertando no sumidouro com garbo e pressão. Regressou ao "Esconderijo" com antecipações felizes.
Tinha entrado uma velha enxuta. Pela autoridade, supô-la com acerto mãe da patroa. A mulher estendia uma voz metálica que vibrava nas tampas mal enroscadas dos boiões de amendoins. Falaram de mortos e de política municipal. Ele escutou, deliciado com a desimportância da vida. Apreciou o estanho da garrafa de ponche, em cujo rótulo se coloria uma sensualidade de mil-e-uma-noites. Havia toda uma existência de vinhos abafados, portos, madeiras, espumantes, brandes-mel, licores de coco, tangerina e noz. E medronheiras.
Para mais, tinha os pés quentes, favorecidos pela regularidade da digestão e a paz de espírito. Não longe do "Esconderijo", o cume da montanha era um nariz frio juncado de pêlos vegetais. No vale, os casarios fumavam por chaminés rupestres. Depois, teria de sair, regressar, matricular-se naquilo a que, à falta de melhor esconderijo, chamamos "realidade".
Caramulo, tarde de 4 de Maio de 2006
3 comentários:
fónix...
Pois, melhor que isto é difícil...
excelente... gostei mesmo muito e... sorri
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