José Abrunheiro
(1880-1928?1930?)
H.
em Busca Delfim
“Não
houve terceiro que se nos reunisse;
não
há nada que valha as discussões objectivas entre duas pessoas.”
GRAHAM
GREENE, O Terceiro Homem
Sangrei hoje do nariz por uma circunstância talvez não alheia ao facto de, há cem anos bem medidos, o meu Avô ter tomado arrendamento de um quarto na Rua de Fora de Portas, hoje da Figueira da Foz, nesta cidade mesma de Coimbra. Eu nunca conduzi carros-eléctricos – mas ele sim, conduzia-os a mando do município. Era de olhos azuis – como eu nunca fui. E está morto – como eu hei-de estar. Era Pai de meu Pai: duplo pecado causador de meu nascimento mas susceptível talvez de perdão ainda. Sangrei hoje do nariz por um distúrbio que não analiso por me faltar exegese médica – mas que suspeito oriundo de um desequilíbrio entre a vontade de viver e a vida que levo. Lá tenho o quarto: na mesma rua, um século passado, com um progenitor de intervalo: tempo suficiente para três desaparecidos.
O parágrafo imediatamente anterior a este encorpa as primeiras falas de Hermínio dirigidas formalmente a Delfim, seu Amigo de há cinquenta anos bem medidos. Foi escrito ao quarto dia do quarto mês de um ano inumerado. Esse dia escoou-se pelo mesmo ralo por que se dissipa toda essa água delével a que chamamos Tempo. Hermínio guarda dessa escrita a propensão algo perigosa porque algo confessional, lingrinhas até – defeitos por que Delfim o não verbera, na verdade, mas que preferiria não ter de tresler. Ao entardenoitecer do dia seguinte, Hermínio, arvorando uma placidez exterior de pessimista profissional, volta a redigir. Em seu derredor, corpos atarefados cumprem as dinâmicas de formigueiro a que a humanidade se não pode escusar. Uma rapariga de caixa com fruta ao ombro; um sul-coreano parlapiando ao telemóvel de última-geração; três cavalheiros vagamente avinhados discutindo ucrânias & cristianos-ronaldos.
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