09/06/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 7 & 8 (10/12.4.2022)

© Edward Hopper




A autoridade da tristeza tem-me imposto algumas sevícias, cuja gravidade hei que combater de frente. Há risco suicidário por estes dias tão precários. Trato amanhã de burocracias algo dúbias – mas que evitar não posso. Por enquanto, tenho de suportar o insuportável: chama-se Domingo.

O pai de Hermínio nasceu no hoje de há precisamente cento e cinco anos. Muita fruta. Muita água sob muita ponte. Dissipa-se dele a figura, à imagem & semelhança da de seu Pai, o condutor municipal de eléctricos com quarto na Rua de Fora de Portas, hoje da Figueira da Foz. Já o nome é película transparente. Hermínio pensa nesses dois mortos. A tarde, já encetada, é de uma claridade rútila. Milhafres espairecem perfeitas silhuetas de cabides altíssimos. Dois irmãos caboverdeanos bebem cervejas à sombra. Tudo luminosamente triste.

A hora pesa. Casais, idênticos como se fabricados-em-série, cafeínam-se, fumam em silêncio, existem em ordem. Quase tudo encerrado. Talvez o Silva, ali à Rua das Rãs, esteja de porta aberta. Não há estropiado nem deserdado desta Cidade que não vá ao Silva, que a cada um acolhe como este mereça por seus porte & comportamento.

Isto é o deserto. Se desertada, a existência volve-se intolerável. Hermínio tem luta pela frente. Dúvida nenhuma quanto a tal. Muita solidão por aí campeia. Anónima toda ela, como é timbre da pobreza. Figuras que se abaixam para catar pontas de cigarro mais do que rechupadas. Prostituição de mais que módico preçário. Exemplo: broches a cinco euros, por esses vãos de vielas apodrecidas há mil anos. Hermínio não mente a Delfim.

 

Hermínio não mente a Delfim:

 

O porvir sabe-me demasiado a um anteontem de há-cem-anos.

Só o larvar esquecimento nos democratiza-fraterniza a todos.

Eu até já passei cheques-visados, créditos a rodos.

Nascer animaliza-nos. Morrer nos (de)volve humanos.

 

É precário dar o vapor do cozido-à-portuguesa a uma geração subditada ao kebab, ao hambúrguer, à pizza, ao sushi, à margarina imitadora da vaca farta. Também não é em quinze-dias que vais ali apertar o pescoço ao teu próprio alcoolismo de quase quatro décadas. Sou todavia-toda-a-vi(d)a Hermínio & não minto a Delfim quando lhe reitero:

 

                         É frio em plena canícula o quarto de meu paterAvô.

Um catre, quatro gavetas de cabeceira, uma mesa e uma cadeira.

O fechador avariado da janela-poente, entram insectos.

A rara chuva encerra este cubículo, esta litroatura. 


 

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Canzoada Assaltante