Felicidade é mais
depressa açúcar dos caramelos que azeite dos iluminados
Agora já não, que o tomou já a calvície sem retorno, mas
ele era naquele tempo de uma cabeleira lustral qual tocha de gel. O mesmo
espaço esférico-cabeçal funcionava au
ralenti de uma acefalia atinente ao seu linguajar pulha e à sua estroinice
miseranda. Mas ela era dele assim mesmo que gostava. Isto do amor pode ter
muito que se lhe repita, mas, no fundo, nada tem que se lhe inove.
Nunca lhe conhecemos o piripíri de uma ideia, o mentol de
uma graça, a pimenta de uma hipótese, o coentro de uma opinião perfumada de
fundamento. Invariável, inevitavelmente, o seu raciocínio íngreme estatelava-o,
nunca sem estrépito e jamais sem edemas, na cloaca petrificada do guano mais
endurecido. Mas que tal lho dissessem a ela mil vezes, que mil e uma e mais cem
ela o queria e curava e amava e babujava.
Dele, lesmice e mesmice eram uma só e mesma coisice. Se
lhe causticavam uma toleima, cacarejava todo espalha-penas com aquela estupidez
indignada das galinhas-carecas quando um cachorro pueril quer brincar às
cadelas com elas. Só podia, por tudo isto, ser carimbado daquele terrível apodo
que é a derradeira coisa que se pode chamar a um zé-ninguém: era bom-rapaz. Não
fazia mal e nunca mal fez, para ela: porque ela hipostasiava nele a essência
mesma do santo, cuidada e tomada a vulgaridade piolhosa por insígnia a mais
virtuosa.
A ignorância envelheceu-o em novo, como é quilate
pindérico da beterraba que se julga ananás. Rangia de incompreensão à face de paráfrases
simples como “Quando mais o euromerkel
sobe, mais o Alcabideche”. Rábulas e fábulas de figurado sentido moral não
puderam nunca adentrar-lhe o maciço granítico sobre que os antigos usavam
chapéu e em cujo cocuruto os rastas de
jamaicana import-imitação espessam o esterco da grenha. Mas ela? Oh se ela
alguma vez outro peso de alimária quisera que lhe amulatasse a alvura!
Ele tinha dinheiro. Deixara-lho uma avó, figurinha de cera
que conseguiu, chegando embora aos 94 anos, não estourar tudo em padres. Nisso,
vá lá e venha cá, não foi ele burro: vivia, sem abrir sequer uma mola da roupa,
dos juros dessa maquia que nunca viu sol. Disso – e das rendas de dois prédios
(um com farmácia e tudo no piso térreo) sitos no miolo comercial mais nobre da
Vila. Naturalmente, ela também disso gostava muito nele, dele emprenhando a
tempo de salvaguardar para si o caldo e o cabeleireiro da velhice amailo um
fiat-uno para cada um dos quatro moços que pariu sem dor na glória das
estruturas de hélice do ADN auto-replicativo.
Foram, é claro, muitas vezes a Fátima, mas sempre pela
Marateca, à guisa de quem ruma ao Algarve da fé. Uma vez até se deram à
extravagância de ir ao Complexo do Bonito, no Entroncamento, onde gozaram a boa
sorte de assistir àquela memorável e dramática conquista da Taça do Ribatejo
pelos rapazes juniores do União de Tomar frente aos seus não menos bravos
homólogos do Alcanenense. No fim do prélio, foram os dois com sua/deles
quaternária prole fedelha alambazar-se de enguias a Escaroupim, jóia de terra-água-ar
de Salvaterra de Magos, por acaso até no mesmo dia em que os fotógrafos Zé
Freitas e Tó Vieira por lá andavam também, aquele como de costume a fotografar
passarocos e este sem fotografar fosse o que fosse por, como de costume, andar
de óptica toda obturada nas gajas.
O tempo entretanto passou (que é aliás o que ele mais faz
nos entretantos) e tornou-se hoje.
Ora, acontece que hoje é precisamente o dia em que mais
nada tenho a dizer, portanto não digo.
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