Confeitaria
Setembro
É um fim de tarde como alguns que vivi na
moça idade. Não frio, mas fresco. Cinza plumada de umas poucas palhetas de
ouro, lá longe. Setembro ténue para uma vida crepuscular. Café e cigarros numa
confeitaria que diz "TRESPASSA-SE"
na porta de vidro. Quase ninguém neste mundo. No outro, o das ruas, uma suave
agitação comercial de ante-fecho de lojas: últimas compras, últimas vendas do
dia.
É a hora dos cinzanos na velha vila (não
consigo chamar-lhe cidade, embora o seja por decreto). Tenho um livro de
Machado de Assis, limpei os óculos, reencontrei a caneta preta de que andava
perdido. As coisas compõem-se.
Andava farto de Agosto, cansado da fornalha
omnipotente, exausto por nada. Agora, devolvo-me este sossego serôdio de
batedor de confeitarias em trespasse. Algumas moedas na algibeira: douradas
umas, outras castanhas. Uma impressão na garganta, que alivio com ríspidos
regougos. Uma rapariga com um balde verde na rua.
Imagino um rio que não vejo daqui. Vai para
o mar, como eu iria também se pudesse mais que imaginar. Bordado de salgueiros
diagonais e de pedras deitadas, é um rio bom. Absorve a luz cinzelada, faz dela
uma faca dinâmica, uma folha de aço não matadora, antes sim avivadora de olhos.
Imagino a minha cidade natal (essa sim,
cidade) sulcada por esse rio, essa lâmina benigna. Transporto-me no tempo,
devolvo-me a moça (c)idade. Vivi perto desse rio este entardecer. O mesmo
crepúsculo nas mesmas margens. A ponte? No tempo. No tempo crepuscular, a ponte
é uma dedada de contracor. Automóveis mais lentos que pessoas - os meus mortos
e os alheios vivos cruzam-se na ponte, cumprimentam-se surdamudamente,
hologramam a visão cinemascópica, passam infinitamente como outros tantos rios.
Embalo belo, esmerada esmeralda -
escreviver. Quietas hostes, adormecidas legiões, uma mala encarnada de cartão
juncada de fotografias de bordos ondulados com o carimbo do fotógrafo no verso.
Um tractor carregado de lenha trota na
calçada: há já quem se aprovisione de lenha para o inverno. Antecipo esses
invernos individuais que não vejo daqui: as mulheres aquecidas nas cozinhas de
pedra amanhando coelhos; os gatos, saciados de vísceras mornas, derramados ao
lume do lar como trapos de flanela; as panelas negras aferventando a galinha
gorda; os homens que chegarão do trabalho e dos cinzanos.
Nada disto é comigo, excepto por magia:
imagino - imagi(a)nação - letrinhas pretas de caneta reencontrada. Atravesso
setembros. Não é difícil. Já não é difícil. Um homem aprende a ser uma imagem
de homem, um relógio de sol, um varredor de cinzas.
Que será o jantar? Peixe do rio não pode
ser, que longe ficam ambos, rio e peixe. Sopa de tomate, quero imaginar, e
depois peito de vitela com massa, doce de laranja, café. Água da fonte, que a
da rede anda química de todo. Uma fatia de pão de segunda, uma lâmina de
marmelada. Depois, sendo já noite, de Machado de Assis nos joelhos e ao rés do
candeeiro, esperar o canto do vento nas laranjeiras vizinhas. O canto do vento
nas laranjeiras vizinhas e o canto rouco dos cães à Lua molhada, à humana Lua
que do alto nos vigia a inocência, o breve cromo do crepúsculo colado de costas
à caderneta da idade, a esperança de um bom trespasse para a senhora da
confeitaria.
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