BAILE SOZINHO
ou
O INVERNO DE QUELUZ
Talvez
entre o amor e o mundo haja uma chaga pior – a memória mortal.
HERBERTO
HELDER, in Doenças de Pele (apud OS PASSOS EM VOLTA)
De 30 de Abril de 2013, terça-feira,
a 14 de Maio de 2013, terça-feira
1
Leiria, noite de 30 de Abril de 2013, terça-feira
Em invernia antiga, uma
vez em aldeia
de que não guardo o nome,
chovia
debilmente través a pouca
luz
pública, a noite vinha
armadurada
de veludos frígidos,
cheirava das casas
a caldo e a cães e a mato.
Dormiam já os animais
maiores,
já os humanos seniores
dormitavam
sentados à face do
brasido, eu não
tinha aonde entrar,
esperava que me
viessem buscar, tinha
tocado no
conjunto que deu baile,
tudo acabara.
Muitos eram os quilómetros
a cumprir
no regresso a Coimbra,
músicos éramos
quatro mais a noiva do
baterista,
que era bonita e estudava
então
para enfermeira ou
professora, não
guardo bem o que me não
pertence.
Fomos desenrolando a fita
preta
da estrada, não havia
então icês
nem tanta auto’strada,
eram beirãs
as curvas apinhadas de
pinheiros,
não nos largou a plúvia
até ao Café
do Silva, onde libávamos o
fim do contrato.
2
Ibidem
Levantava-me cedo ao outro
dia,
que não sei já qual,
refeita a manhã.
Se no sincelo atentava,
gostava daquele
vidro ge(r)ado sobre a
flora simples
da Cidade: planava sobre
essa arte do
cristal chamada Frio.
Tinha algum dinheiro no
bolso quando
o cantor pagava, era ele
quem tratava
do metal não assim tão
vil, naquele
tempo em que comer uma
sandes e
beber café-com-leite sabia
à música
que se tinha tocado num
salão recreativo.
Retomo uma dessas manhãs
de invernias
nessa Coimbra desses
acabados dias:
saía muito cedo da cama,
muito cedo
do quarto arrendado ali
perto de S. José,
nada longe do Liceu onde
me preparei –
para ser só isto.
Outro trabalho não tinha
nem procurava.
Dava pontualmente
explicações de francês
a meninos capciosos que
queriam era
ser músicos como na
televisão viam eles
que havia, e tantos. Mas
trabalho-
-trabalho, não tinha nem
demandava.
3
Leiria, manhã de 1 de Maio de 2013, quarta-feira
Com discrição era que
devagar olhava
os silfos aéreos
terrenamente ditos
Mulheres, vaporosos génios
de que Coimbra
é tão profusa, tão
fornida.
Ubiquista quase fui e
decerto me senti,
sem magia e sem anátema.
Foi de certo modo um tempo
perfeito.
Havendo por certa a morte,
a vida
parece uma prenda fora do
aniversário.
Outras vezes, todavia,
cruzando pela
ponte diagonal do Calhabé
para o Norton,
o absurdo ganhava
transporte por meus pés.
Quando fui músico para
comer, comia
também das muitas
laranjeiras que havia
por aqueles pátios
ferrugentos onde
casotas desertas chamavam
em vão
por cães antigos e donos
que já não
eram, viúva marquesinha,
viúvo conde.
Cheguei, claro, a falar
sozinho, praças
e ruas por meu auditório o
mais
surdo. Chegado o Natal,
tremiam
as gambiarras em os
pinheirinhos
de plástico para os
matrimónios sintéticos
& suas crias de
celofane.
4
Ib.
Transido transito ’inda,
em pleno Estio mesmo, pelo trânsito
de imagens desse tempo
músico. Ensaiávamos num anexo
de ferramentas que
pertencia aos pais do pianista,
era perto daquela via de
S. João que leva
à Portela, à Lousã, a
Espanha, ao Mediterrâneo.
A mim nunca me levou,
valha a verdade.
Penso que o António Nobre
por ali refrescou
ante uma criança a
gentileza de papoila
(vermelho tossido de
héctico, fatal cor).
Sá de Miranda, Camilo
Pessanha, Eugénio de Castro,
Camões até, podem (devem)
ter sabido
onde ensaiávamos, perto o
Mondego claro.
O cantor e eu íamos depois
aos bilhares,
o guitarrista era já
casado então,
o baterista morava mais
longe e não podia,
o último comboio levava-o
para os campos de arroz
que as cegonhas regiam
como fadas vorazes,
dessa voracidade lenta de
que o amor é feito.
E se hoje isto recordo e
assento em letra de canção,
é por hábito imorredouro,
eu fazia a segunda-voz,
tom e meio acima da linha
do vocalista,
ficava bem, as pessoas
gostavam, pelo menos dançavam.
Íamos aos bilhares,
conhecíamos raparigas,
algumas por vezes ficavam,
por festa.
5
Leiria, tarde de 8 de Maio de 2013, quarta-feira
Muitos anos são volvidos
já desse (m)eu-corpo,
ainda canto mas em surdina
só, e cambaleada,
por ruas & praças de
cidades acumuladas,
outras de si mesmas, como
mesmas e outras são
as jornadas em salmoura de
literatura,
nem outra coisa me surge
que isto de escre’viver.
Procuro talvez tão-só a
serenidade, não importa
que mais do que ela cinzas
coleccione, pouco
é deveras o que ainda
importa, uma saúde
razoável, moedas para
cigarros e refrigerantes,
algum trabalho de vez em
quando que eu possa,
saiba e queira fazer, sim,
pouco importa.
Gostaria ainda, claro que
sim, de ser olhado pelo mar
no Inverno, quando os
penhascos se apalaçam
à monarquia de gaivotas
& albatrozes, caiado
de sal e juncado de
naufrágios equivalentes
aos despojos das vidas,
quais vidas?, todas elas.
(Ou quase todas elas, há
casos que felizmente não.)
Em
poucas meias-dúzias de anos, os leitores
chegarão
à foz do espelho terminal no Inverno
de
Portugal, país que a infância soube perder
por
todos os lados menos pela Língua, os leitores
terão
frio, não será já amanhã nenhum,
entretanto penso no Baile que toco sozinho.
entretanto penso no Baile que toco sozinho.
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