Aritmética
de rebanho
Digo-o de cor mas não à pressa: a 8 de
Março próximo, é de celebrar o primeiro século decorrido desde a magia de
maravilha daquele momento/limiar em
que, acercando-se de uma cómoda alta em perfeito transe de criação, um tal
Fernando Alberto Pessoa Caeiro deu à luz, e de um jacto, os poemas de O
Guardador de Rebanhos.
Esse mesmo ano quatordécimo do XX foi o do
rebentamento da famigerada Grande Guerra, também chamada Primeira Mundial (como
se toda e qualquer guerra, por invariavelmente configurar o crime da
desumanidade contra a humanidade, não fosse sempre mundial).
E foi também, já agora, o do nascimento de Alberto
dos Santos Abrunheiro, meu Tio paterno e o mais perfeito exemplar da mais
exemplar solidão pessoal que já me foi acontecido conhecer. Amputado aos
dezanove anos de uma das pernas no mesmo ano de gangrena da ascensão de Hitler
à chancelaria do Reich e da, por cá, infame Constituição salazarenta que pros(ins)tituiu
a ratazanaria do Estado Novo, esse meu também Alberto atravessou a vau o
almegue desolado da própria existência, a qual se lhe finou, sozinho ele como à
chuva um cão sem coleira, a 14 de Agosto de 1980. Outro catorze para outro
Alberto, portanto: aritmética de rebanho.
Destas águas passadas, confesso, se movem
os meus moinhos, quiçá se não de mais. São, por assim dizer, a minha cinemateca
portátil, pois que, surda e gestual à maneira de cinema-mudo comigo sozinho na
plateia, sempre me deixa re(vi)ver o-que-lá-vai no cumprimento da ameaça de
nunca mais voltar.
Entre o ano que aí vem e o que ora se nos
acaba, parece-me bem (mal) que o Diabo já veio e já escolheu: mais do mesmo e p’ra
pior. O contumaz e relapso desGoverno da Nação, em inquebrantável imunidade ao
mais simples civismo como o daltónico ao arco-íris, tudo (des)fará em proveito
do piorio.
Passos continuará sempre inapto e inepto,
incapaz sempre de entender o Barão de Itaraté: “Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar.”
Já o inefável Portas não há-de ter, dentre
as dezenas de milhar de fotocópias que à escancarada sorrelfa esmifrou ao xerox do Ministério da Defesa, uma mera folheca
A4 que lhe recorde o que Virginia Woolf recordou, que foi aquilo que fez a Lady
Winchelsea escarnecer do autor de Trivia,
um tal John (curiosamente) Gay: “Mais lhe
competiria andar à frente da carruagem do que andar nela.”
Resta-nos, dos vigentes, o mineral Cavaco,
cuja rigidez malar trai dele a propensão facínora para a lagrimeta de esguicho
provinda da flor de plástico à lapela de mau cómico. Porque, de entre tantas
mais coisas, a “preocupação” dele
para com os reformados se resume a dois utentes: ele próprio e a própria mulher
dele próprio.
Em 2013 como em 2014, tudo isto me parece
ser de sem-tirar-nem-pôr, tão-só ressalvando, da geral canalhada, a rapaziada
de toga-tunga do Tribunal Constitucional, benza Deus a tais santinhos deste
mais estábulo do que Estado.
À guisa, enfim, de conclusão, isto está pró
péssimo e não vai p’ra menos ruim. Optimismos tolos, sirva-se deles o acéfalo
de serviço à porta da sopa-dos-pobres em arroubo de caridadezinha sazonal. A
verdade é sermos, um a um(a), dez milhões de pategos sempr’agradecidos a Vossa
Senhoria, o bonèzito estendido como língua de pano, o joelhozito dobrado em
ângulo tipo-Cova-da-Iria ante a azinheira do Poder. Como é verdade também
subirmos todos já a encosta nascente da Serra do Caramulo, em cujo cume
pontifica o quarto sozinho e crepuscular do sanatório que os dois Albertos, o
que era meu Tio e o que guardava rebanhos de tinta por veigas de papel,
escolheram para, respectivamente, morrer e nascer – dois actos existenciais que
o próximo ano não promete propriamente vir a saber distinguir.